(Pseudónimo de Maria Idalina Alves
de Brito)
MARIANA DE
LEÃO (a)
I
Neste
leito de dois tostões
frágil
catre amigo, encosto
minhas
lágrimas, sussurros e dores.
Não
durmo. Ratazanas percorrem meu
dorido e
cansado corpo sob lençóis
da velha
seda e cobertores de lã que teci nos
alegres
tempos de paixão e filhas nascidas.
Denúncias
me arrastaram para um
estado
de gemidos, medos e ais,
alegorias
no teatro da verdade,
de
testemunhas jurando a Deus, Senhor,
Cristo,
Jesus, e Maria de Nazaré.
Louvo-Te
Senhor, nosso Deus do Céu
e guardo
a tua Lei, que é de Moisés.
Encomendo-me
a Ti Todo Poderoso
que me
haveis de guardar e salvar destas
bocas de
más gentes. Oro-Te Adonay sobre
esta
mesa toalha bordada por cansadas
mãos
minhas, neste dia grande do Kipur.
Silêncio
iluminado por seis acesas torcidas
em
tigelas de azeite no interior de varrida
casa de
fora para dentro. Hoje e sempre,
ofereço-Te
minhas filhas Leonor, Francisca,
Isabel e
Ana, que na religião de Moisés eduquei
de seu
pai às escondidas, Francisco,
cristão-velho,
barbeiro, marido escolhido fora do
“povo da
nação” desta terra de Sambade (b).
De raiva
contida, solidão, amargura,
nestes
dias, apoia-me Senhor. Não me
abandones
e livra-me da má morte,
Anjo da
Guarda, meu.
II
Cabo dos
trabalhos em sambenito (c)
insultos,
vergonha, tormentos de fome,
ausência,
dor e abalos de inquietude desta
cadeia
presente que queres em urgência passado.
Esquecer.
Fugir para Castela, França ou outra terra
onde
Adonay, Deus, Senhor, seja louvado.
Chorar
lágrimas pelas filhas que te tiraram,
maior
riqueza que possuis em ouro, sedas,
casa e
cortinhas. Passar o tempo na mais
abrupta
rapidez familiar dos dias para
esperança
e nova vida futura.
Cavalgar
em vez de caminhar.
Voar em
vez de andar.
Percorrer
os anos em momentos de
milésimas
de segundos. Tempo quer-se.
Deixar
este País e esta terra em
séculos
de história, de trabalhos e cansaços.
Urge
acontecer de
Mariana
de Leão para Lara de León.
Ultrapassar
a Inquisição hoje em democracia,
liberdade
e tolerância. Volver em compassos
de
espera as diferenças étnicas.
Assumir
és judia, marrana,
cristã-nova
ou nova-judia.
És
Mariana e Lara, de Leão ou de León.
III
Nesta
inverniça filipina, fujo para Castela,
meu país
que é Portugal, também.
A chuva
bate-me na cara e meus pés são
lamas
encadernidas em solas de peúgas
de lã
que no tear teci há anos.
A
família já não o é. No medo da morte
esquecem-se
os pais, filhos e maridos.
A
Inquisição entranha-nos, come-nos vivos
mesmo
testemunhando estarmos mortos.
Vivos e
mortos em constante resiliência.
Os
muares percorrem carregados a distância
do roubo
ao ter. Ouro, jóias, linhos, sedas,
terras e
casas, desapareceram na ganância
da Ordem
e justeza de alguns que se dizem
Deus da
Inquisição. Senhor, nosso Adonay,
Tua
palavra nunca faltou, guarda-nos e salva-nos
levando-nos
para a terra prometida de mel e flores.
Judeus
errantes, sem lugar certo, como casa
o mundo
todo.
A tua
voz ecoa em mim, Senhor:
-
Mariana, Mariana, tempos virão em que de
Cristo
assassina, passarás a holocausto heroína.
2013.05.27
(a) Ver
: ANDRADE, A. Júlio e GUIMARÃES, Mª Fernanda, Marranos
em Trás-os-Montes, Judeus-Novos na Diáspora. O caso de Sambade. Porto,
Lema D`Origem. Editores, Lda, 2013.
Mariana de Leão, judia
e cristã-nova, nasceu em 1590 e casou em Sambade com um cristão- velho,
Francisco Rodrigues. Foi-lhe instaurado o Proc nº 10579 da Inquisição de
Coimbra. Todas as suas 4 filhas tiveram igualmente processos abertos naquela
Inquisição. Mariana de Leão acabaria por fugir para Castela.
(b) Sambade
é uma freguesia do concelho de Alfândega da Fé, distrito de Bragança.
(
c) Sambenito : espécie de saco de cor amarela e com uma cruz vermelha, que os
penitenciados do Santo Ofício traziam vestido quando regressavam à terra, em
sinal de que tinham sido presos por judaísmo.
Sem comentários:
Enviar um comentário