28 outubro 2015

POESIA DE LARA DE LEÓN

(Pseudónimo de Maria Idalina Alves de Brito)

 MARIANA  DE  LEÃO (a)



I


Neste leito de dois tostões
frágil catre amigo, encosto
minhas lágrimas, sussurros e dores.
Não durmo. Ratazanas percorrem meu
dorido e cansado corpo sob lençóis
da velha seda e cobertores de lã que teci nos
alegres tempos de paixão e filhas nascidas.
Denúncias me arrastaram para um
estado de gemidos, medos e ais,
alegorias no teatro da verdade,
de testemunhas jurando a Deus, Senhor,
Cristo, Jesus, e Maria de Nazaré.
Louvo-Te Senhor, nosso Deus do Céu
e guardo a tua Lei, que é de Moisés.
Encomendo-me a Ti Todo Poderoso
que me haveis de guardar e salvar destas
bocas de más gentes. Oro-Te Adonay  sobre
esta mesa toalha bordada por cansadas
mãos minhas, neste dia grande do Kipur.
Silêncio iluminado por seis acesas torcidas
em tigelas de azeite no interior de varrida
casa de fora para dentro. Hoje e sempre,
ofereço-Te minhas filhas Leonor, Francisca,
Isabel e Ana, que na religião de Moisés eduquei
de seu pai às escondidas, Francisco,
cristão-velho, barbeiro, marido escolhido fora do
“povo da nação” desta terra de Sambade (b).
De raiva contida, solidão, amargura,
nestes dias, apoia-me Senhor. Não me
abandones e livra-me da má morte,
Anjo da Guarda, meu.



II


Cabo dos trabalhos em sambenito (c)
insultos, vergonha, tormentos de fome,
ausência, dor e abalos de inquietude desta
cadeia presente que queres em urgência passado.
Esquecer. Fugir para Castela, França ou outra terra
onde Adonay, Deus, Senhor, seja louvado.
Chorar lágrimas pelas filhas que te tiraram,
maior riqueza que possuis em ouro, sedas,
casa e cortinhas. Passar o tempo na mais
abrupta rapidez familiar dos dias para
esperança e nova vida futura.
Cavalgar em vez de caminhar.
Voar em vez de andar.
Percorrer os anos em momentos de
milésimas de segundos. Tempo quer-se.
Deixar este País e esta terra em
séculos de história, de trabalhos e cansaços.
Urge acontecer de
Mariana de Leão para Lara de León.
Ultrapassar a Inquisição hoje em democracia,
liberdade e tolerância. Volver em compassos
de espera as diferenças étnicas.
Assumir és judia, marrana,
cristã-nova ou nova-judia.
És Mariana e Lara, de Leão ou de León.


III


Nesta inverniça filipina, fujo para Castela,
meu país que é Portugal, também.
A chuva bate-me na cara e meus pés são
lamas encadernidas em solas de peúgas
de lã que no tear teci há anos.
A família já não o é. No medo da morte
esquecem-se os pais, filhos e maridos.
A Inquisição entranha-nos, come-nos vivos
mesmo testemunhando estarmos mortos.
Vivos e mortos em constante resiliência.
Os muares percorrem carregados a distância
do roubo ao ter. Ouro, jóias, linhos, sedas,
terras e casas, desapareceram na ganância
da Ordem e justeza de alguns que se dizem
Deus da Inquisição. Senhor, nosso Adonay,
Tua palavra nunca faltou, guarda-nos e salva-nos
levando-nos para a terra prometida de mel e flores.
Judeus errantes, sem lugar certo, como casa
o mundo todo.

A tua voz ecoa em mim, Senhor:

- Mariana, Mariana, tempos virão em que de
Cristo assassina, passarás a holocausto heroína.


2013.05.27




(a)    Ver : ANDRADE, A. Júlio e GUIMARÃES, Mª FernandaMarranos em Trás-os-Montes, Judeus-Novos na Diáspora. O caso de Sambade. Porto, Lema D`Origem. Editores, Lda, 2013.
Mariana de Leão, judia e cristã-nova, nasceu em 1590 e casou em Sambade com um cristão- velho, Francisco Rodrigues. Foi-lhe instaurado o Proc nº 10579 da Inquisição de Coimbra. Todas as suas 4 filhas tiveram igualmente processos abertos naquela Inquisição. Mariana de Leão acabaria por fugir para Castela.
(b)    Sambade é uma freguesia do concelho de Alfândega da Fé, distrito de Bragança.
( c) Sambenito : espécie de saco de cor amarela e com uma cruz vermelha, que os penitenciados do Santo Ofício traziam vestido quando regressavam à terra, em sinal de que tinham sido presos por judaísmo.





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