Benlhevai é o Reino Maravilhoso de José Maria Fernandes.
Pertencendo a um família numerosa e ele com assento mais permanente nesta
aldeia de Vila Flor, foi incumbido de ser o cronista-mór do Reino.
E desempenhou bem as funções, porque este livro é e será uma
preciosidade para os estudiosos de antropologia, etnografia, comportamentos
sociais,linguística mesmo ou sobretudo nos regionalismos,
localismos ou
corruptela das palavras, o que levou, compreensivelmente,o autor a apendiçar um glossário à obra.
O que nos pode
surpreender neste livro é a coexistência do sagrado com o profano, o
repositório de um conhecimento empírico e ancestral na nomeação e catalogação
das alfaias agrícolas , das suas características e utilização.
É toda uma cultura popular, mais assente na passagem de
testemunho e memória de pai para filho, do que em qualquer documento escrito.
Registe-se também, e não é tão pouco, uma recolha da
sabedoria popular, dos costumes, e dos ciclos da vida do homem e da Natureza. E
nunca, como aqui, o homem e a natureza andaram tão ligados e foram tão
dependentes um do outro.
Chegado aqui, com o
mundo rural hoje tanto em mutação, apetece-me lembrar-vos uma história,
verdadeira, que aconteceu em Trás-os-Montes, após o 25 de Abril, quando nós,
gente do norte, passamos a ser vistos como gente ignara, que vivia noutro
mundo, como se o Reino Maravilhoso não passasse de um Jardim Zoológico, por
profunda ignorância urbana, ou tentativa envergonhada de alguns esconderem as
suas origens, renegarem as suas raízes, principalmente aqueles que se
acomodaram às delícias da cidade e amesendaram à falsa fartura do orçamento.
Aqui vai a história.
Estava o país em plena campanha para as primeiras eleições livres, após 48 anos
de obscurantismo, quando um jornalista
da RTP rumou até ao Norte. E porque uma velha de negro vestida é sempre
uma imagem de que um modelo de citadino
gosta, vai de entrevistá-la, com o ar paternalista de quem tem o conhecimento
do efémero e do que está na moda,perguntando-lhe: “ Então velhinha sabe o que é
uma Assembleia Constituinte?”. A velha nem sequer olhou para ele e respondeu: “
E o senhor sabe o que é um almude de azeite?”
Estamos perante dois mundos: um que tem séculos de
conhecimentos acumulados; outro, que não passa da espuma dos dias.
Bem haja o autor
deste livro que consegue recuperar o que irremediavelmente estaria perdido,
porque cada velho que morre é um livro
que desaparece.
Benlhevai tem a sua
história. O primeiro registo que se conhece, e já com este nome, é de 1258, nas
ordenações de D. Afonso III, farto que
os senhores feudais lhe roubassem terras que, por direito real, lhe pertenciam.
Em 1950 a aldeia tinha 500 habitantes. Pelo censo de 2011,
não passava de 200 habitantes. Durante 60 anos, esta aldeia, como tantas
outras, foi dilacerada pela emigração e pela guerra, os cemitérios cresceram
mais do que as creches e as escolas.
O autor denota uma grande consciência social quando retrata,
com minúcia, as condições de vida e os seus agentes, com a aldeia hierarquizada
entre ricos (digamos antes abastados), pobres ( digamos antes muito pobres) e
remediados( digamos antes, no limiar da pobreza, mas com algum património).
O livro, sendo um testemunho de solidariedade vicinal e de
hospitalidade para o forasteiro, é sobretudo um hino à mulher, como o elemento
fundamental da comunidade.
E o autor vai
enumerando pelo nome, as mulheres como heroínas e os homens que fazem parte da
sua memória e da sua infância, com os nomes e mesmo as alcunhas.
O autor é rigoroso na descrição das festividades, tanto
pagãs como religiosas, desde a festa do Divino Espírito Santo até à matança do
porco em Dezembro.
E não deixa de lembrar que o início do ano agrícola é uma
espécie do início de vida. Tudo na aldeia se move por ciclos, os homens e a
natureza.
Hiatos há que vêm perturbar esta rotina secular: os anos
loucos do volfrâmio, em que as riquezas morriam tão cedo como tão rápido tinham
nascido.
Depois, com as minas em ruínas e os mitos abandonados, tudo
regressa à normalidade das trovoadas de Maio, das pulhas e do Entrudo, da
Quaresma,dos jogos do fito e do ferro, das segadas, de Agosto quente e das
festas do Cabeço.
E atento à minúcia, o autor descreve, como se fosse o guia
de um Museu do Mundo Rural, a malhadeira e o carro de bois. A descrição deste,
é exemplar, com utensílios aperfeiçoados ao longo dos séculos, num conhecimento
empírico que nos leva a admirar como aquela simplicidade é tão complexa.
A linguagem tecnológica e asséptica do software, hard ware,
down load, etc. etc, se é simples para
os seus utilizadores e hoje tão vulgarizada, em relação às partículas ( passe a
ironia) que compõem um carro de bois, é pobre. Dificilmente um hacker
compreenderia esta linguagem.
Vai longa já a
conversa. Muito haveria ainda de dizer, desde a generosa tentativa de uma
juventude carregada de ideais, com o 25 de Abril, ressuscitar tradições e promover ciclos
culturais, com a criação de escolas e a visita semanal do médico.Mas os sonhos
foram-se perdendo. Cada um partiu para o seu lado, à procura de vida melhor, o
deserto vai-se estendendo pelas aldeias, o próprio país é um sítio cada vez
menos frequentado.
Resta ao autor a ligação profunda, de um intensidade quase
possessiva, pela sua aldeia.
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