Sinopse:
O Manco é uma figura que procura a sua unidade, enquanto ser
humano, entre a dura realidade em que
sobrevive e a busca de uma religiosidade que parece não lhe trazer respostas.
Uma figura que se busca entre o seu mundo interior e exterior.
O Manco - Entre Deus e o Diabo é um grito em silêncio de uma
revolta contida.
Um romance alegórico
O ponto de partida e chegada é o mesmo: a geografia
moncorvense, a pouco e pouco, esclarecendo-se; diferentes os pontos de uma
existência, quando se é jovem ou já muito sofrido: vimos dos cumes altivos de
pegureiro às fundas gargantas de linfa onde se percebe melhor o vivido.
Desde o início, pressente-se uma indistinção, na silhueta de
Manuel, ao longe, que o pai reconhece pela «andadura». É um índice, ou indício,
narrativo forte, também porque vai alterar a regularidade das coisas. Numa
diegese com poucos incidentes, e gloriosos acidentes da natureza e linguagem
transmontanas, inscreve-se vingança, e decide-se futuro, entre Março e Novembro
de 1881, quando, acusado de incendiário por Maria das Dores, Manuel António
Morgado, de 20 anos, pastor e camponês, declina identidade em seu irónico
apelido: embora inocente, perde-se no conceito do povo, de iguais que o juram
criminoso. É bem certo que Deus anda com o Diabo às costas, reiterando «antigo
ditado».
Essa perda do (bom) nome anuncia outras piores. Afasta-se,
assim, dos montes, trocados pela cadeia da Relação do Porto; degredam-no da
pátria para Ultramar então na moda, quando conferências internacionais ‒
alude-se à de Berlim ‒ cobiçam as nossas possessões. Se a Justiça lhe
acrescenta uma naturalidade, Carviçais, já Manuel perdeu o pé da própria
realidade, e tão indiferente lhe e nos parece o silvo da locomotiva na linha do
Douro (cujos primeiros troços são de 1875, e, no dealbar de 80, chegam à Régua
e ao Pinhão) como a estada africana, onde se vê amputado de uma perna. A figura
dissolve-se em corrente de consciência, que o narrador persegue, enquadra na
atmosfera da época, deseja interpretar, num universo coetâneo rasgado em cores
impressionistas (quase logo, pontilistas) e tentames simbolistas nas artes
plásticas e na poesia. À luz destas homologias, é um romance fora do nosso
tempo, a requerer demorada exegese ‒ e mais se olhássemos à teoria da vontade
em Schopenahuaer, ao desvão do inconsciente freudiano…
Do terroso naturalista passa-se, entretanto, à ideia, a uma
conceptualização que, experimentado o Brasil ‒ outro destino nacional, onde
amealha dinheiro, mas retorna-viagem, quando a mãe adoece, que já não consegue
ver viva ‒, desemboca na concretização de um sonho, tanto mais difícil quanto
se quer empresa de indivíduo só, e deficiente, desafiador de homens e de Deus,
no esforço derradeiro de transportar as mós, qual anti-Sísifo.
O velho sonho de construir um moinho não visa, somente,
alimentar o corpo; busca ‒ talvez, o principal achado ‒ recriar a alegoria da
caverna platónica: «Foi além, entrou na caverna da sua existência, entrou no
mundo das sombras, no submundo da inconsciência humana. Esteve no mundo do
esquecimento.» É mais explícito noutra passagem: «Acordou agitado; sentia-se
distante de tudo, longe do mundo dos outros, que sempre o atormentou. A noite
não lhe trouxe a calma que procurava. Em boa verdade nada parecia dar-lhe
satisfação plena. Durante anos sonhou com o moinho, agora que moinho era uma
realidade, sentia-o como se tivesse encontrado o seu desterro, a caverna onde
viveria morrendo. Maldição dos insatisfeitos! Ternura dos incompreendidos!
Madrugada sem luz! Noite sem regresso!»
Que a satisfação, conquistado o objecto do desejo, vire
insatisfação, vai de si, nos heróis e semi-heróis. Estranho é que se transmude
em «desterro», como se o degredo africano fosse uma estação inevitável no
peregrinar da alma. Há uma condenação superior, já espelhada na sentença de
juiz terreno?
Seja como for, essa consciência é a verdadeira realidade,
como se ameaçava desde a epígrafe. Negatividade, no prefixo in- e na preposição
sem, a par de outras fórmulas? Eterna «dúvida inconsequente», que humedece o
último poema? Ou puro desejo de, embora sofridamente, objectivar-se, contra a
«verdade» que só os outros dizem possuir?
O gesto vitruviano enfim revertido na horizontal (contra a
posição vertical) é um reforço dessa procurada harmonia ‒ reconhecidamente, em
falta ‒, que o Renascimento científica e esteticamente alicerçou; o pensamento
medieval, contudo, adaptou-o à cruz de Cristo, e, agora, humana (ou bicho da
terra), num sentido salvífico. Vislumbra-se esta convergência, no cair do pano.
Eis como, de um andamento originariamente rural,
localizável, à vista da Serra do Reboredo, se passa à enxovia da dignidade, da
amputação familiar, social e pátria, até à morte dos seus e desprezo que lhe
votam semelhantes; como um discurso fortemente enraizado, com boa enxertia no
léxico regional, se atenua, para recrescer na frase autopsicográfica, em
gradual romance-ensaio de propósito alegórico, feição raríssima entre nós.
O incêndio é um incidente, seguido dos trâmites judiciais,
que também faltam à literatura nacional: são factos sociais, análogos de
sentido, motores narrativos; mais do que um contra todos, perdendo-se quando
mais se diz no nome e lugar de nascimento, é um herói psicológico em trânsito
de maioridade, até se afastar para fundas terras e magoar no chão «de onde lhe
vinha toda a vitalidade». Este inesperado elogio à vida é timbre dos melhores.
Ernesto Rodrigues
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