19 dezembro 2017


Natal em mim

In memoriam de Maria Odete de Castro Tavares Gomes

O Natal evoca em mim dois sentimentos, qual deles o mais fundo e emotivo. São sentimentos antitéticos: um de alegria e completude, de crença num mundo cheio de futuro, onde tudo era novidade e deslumbramento e um outro feito de ausências, em que a falta dos que sempre estavam, se adensa e toca mais fundo, nesta quadra… 
A casa da avó Arminda iluminava-se por dentro e por fora. O lume recrudescia a cada toro que o padrinho atirava para a lareira e a cozinha aquecia e iluminava-se, fazendo brilhar o fumeiro, pendurado em varas sabiamente equilibradas em estrutura de arame, que asseguram que nenhum de nós levasse com uma peça de fumeiro em cima, durante o convívio familiar.
Minhas tias, doceiras afamadas, entravam numa roda viva: era o amassar das filhós e o tender e o fritar e polvilhar com açúcar e canela: “olha que as filhós querem-se doces!”…
Era a aletria que não podia faltar na mesa da consoada e o arroz doce e os milhos doces, por que o meu pai se “pelava”…Mas o mais trabalhoso eram as rabanadas, cujo pão demorava dias a estar no ponto e depois tinham de obedecer aos tempos certos, caso contrário transformavam-se numa papa enchumbada em leite e óleo  …E quando se entrava no grande pátio granítico da casa, cuja escadaria levava ao andar superior, vinda do frio polar do Inverno trasmontano, eu era logo imersa numa nuvem de calor e cheiros deliciosos, a canela e açúcar e limão que me faziam galgar os degraus de dois a dois para ver o que estava a acontecer na cozinha, o grande laboratório mágico, onde as poções deliciosas se fabricavam!
Depois tudo era colocado na sala grande. Esta era, aos meus olhos de menina, um lugar quase mágico, onde o tempo podia voltar para trás, cheio de retratos antigos de gente de outros tempos que me antecedera na história familiar e dezenas de fotos de pessoas que eu nem conhecia, espalhados pelos móveis e aparadores.
Os meus padrinhos, como não tinham filhos “perfilharam” mais afilhados do que é possível dizer ou saber e muitos deles faziam questão de enviar fotos que eles, gente de afetos profundos, faziam questão de ter sempre presentes… Era nessa sala, numa mesa redonda do canto que as “iguarias natalícias eram colocadas pelas "mestras cozinheiras” e eu, secretamente ia espreitar , debaixo da toalha branca de linho com que estavam protegidas de “olhares” indiscretos…Como se também o pudessem estar de possíveis subtrações…
E chegava o momento da ceia : o barulho, a confusão, a animação, que na altura me punha com um nervoso miudinho, na minha timidez de criança muito metida em si…De resto, eu e a minha prima, pouco mais nova que eu, estávamos sempre numa ansiedade a querer saber das prendas de natal, mas as regras estavam definidas e conhecíamo-las há muito: só se abriam os presentes quando se regressasse da missa do Galo, depois da meia-noite…E debaixo do pinheiro só havia o musgo que apanháramos na cortinha , com as figurinhas do presépio, mais nada..
É curioso como agora, passados tantos anos, me vêm tantas vezes à memória ditos e frases e risos e expressões daqueles que já partiram para a grande Viagem e fizeram parte de tantos natais da minha vida. A cada ano que passa sinto a sua falta com uma dor renovada e um vazio mais fundo.
Agora o Natal é o dos gadgets e das novas tecnologias, da netflix e da apple, do I-phone e dos meus filhos e da lareira com recuperador que instalámos na sala grande cá de casa para mitigar a saudade das grandes lareiras abertas dos natais antigos. Nessa altura em que eu lia até às duas da manhã, aproveitando cada dia de férias para desbravar o fantástico mundo dos livros e viajar nas histórias, que as aulas e o estudo não tinham permitido fazer durante o 1.º período…Ficava com a mão que tinha fora da cama, gelada, no quarto da minha avó materna e tinha de a ir alternando para segurar no livro, pois na aldeia o aquecimento era na cozinha e braseira a brasas na sala grande e ponto! Mas nunca ler me soube tão bem…Pois era ao mesmo tempo um desafio e um gozo enormes. E foram tantos natais a descobrir Mauro de Vasconcelos e a meninice dorida do Meu pé de laranja lima, as aventuras de Constantino, guardador de vacas e de sonhos, Quinze histórias da Mitologia e de Ficção e de Mistério…
“Ó filha munto lês tu!” -dizia a minha avó materna, a quem metia muita confusão que eu amanhecesse, entardecesse e anoitecesse, agarrada a um livro…
Às vezes dormia com ela, quando o meu avô já não estava connosco. Lembro-me que dormia sempre de camisa de dormir de flanela e era pequenina e quentinha, como só as avós sabem ser e eu encolhia-me para conseguir chegar aos seus pés e ela aquecia-me e contava-me estórias e ditos antigos e orações…-que pena tenho agora não os ter assente… Pensamos sempre que os que amamos são eternos e a sua memória não se apaga esquece, mas chega um dia em que deixam de saber quem são…
Olhando retrospetivamente, a saudade é imensa: das pessoas, dos afetos, das conversas e só é mitigada pelo amor imenso dos pais, ainda presentes e elo a esse tempo antigo e dos filhos, elo com o futuro e todos os projetos que sinto que ainda me faltam cumprir.
Muita coisa mudou em mim: os sonhos, a crença ilimitada nos outros e nas potencialidades da vida. Não o sentindo, já percorri quase meio século, mas creio que o Natal evocará sempre em mim, enquanto tiver consciência de que vivo, uma mescla de sentimentos agridoces que mais nenhuma época do ano não tem o condão de fazer!



Carla Alexandra do Espírito Santo Guerreiro
Texto inédito.

1 comentário:

Odete Ferreira disse...

Sublime memorial, em conteúdo e forma: lendo, inalei os cheiros, provei os sabores e revi-me em momentos teus.

E que bem ficou, no texto, o nosso léxico: cortinha, pelava, assente...

Parabéns, Carla Guerreiro. Bjinho