12 maio 2016

«O PATINHO DESASTRADO» de Amélia Ferreira-Pinto

DIA DA CRIANÇA
Um conto ─ uma vivência
 
O PATINHO DESASTRADO
 
A galinha Pintada era a mais bela e atilada da capoeira. Mal o galo Sacrista, de crista romanista, dava o sinal da alvorada, corria ligeira a esgravatar na estrumeira.
        Não que a vida não se ganha a dormir. E a Pintada tinha grandes sonhos: queria voar, partir à procura de horizontes mais largos.    
        Era uma galinha elegante, de um negro esverdeado, salpicado de pintinhas brancas. A dona, a senhora Maria, já andava de olho nela. Não duvidava que aquela dengosa daria uma grande poedeira ─ era de raça─, mas seria uma boa mãe?!
        A dengosa perdera o juízo: cantarolava, batia as asas, numa correria louca pela cortinha, desafiando todos os galarós da vizinhança.
        Porém, após uma postura de uma dúzia de ovos, a Pintada começou a ficar esquisita: perdera o brilho das asas, comia pouco e andava febril. Punha a cabeça de lado, contemplava o azul transparente do céu e pensava... pensava...
        Deu em ficar na capoeira. Juntou umas palhinhas à volta dos seus ovinhos, e ali se quedou sobre eles, dormindo e sonhando, sonhando e dormindo. E só acordava quando a dona a chamava à realidade, oferecendo-lhe alimento e água, que ela bebia sofregamente. Era então que podia observar aqueles ovinhos tão brancos e polidinhos donde sairiam os filhinhos da Pintada. Mas ocorrei-lhe uma ideia extravagante: foi pedir à vizinha um ovo de pata e colocou-o no meio dos doze.
        A Pintada, quando deparou com aquele intruso, exclamou surpreendida─ cuó! cuó! cuó!!!
   
        E lá se foi ajeitando como pôde, empurrando dum lado e doutro, abrindo as asas o mais que podia.
        Levantava-se, agachava-se, dormia... dormia... sonhava e mal comia. E no fim de vinte e um dias, ouviu umas batidinhas leves nas cascas dos ovos. Um a um, com a sua ajuda, saiam os pintainhos: molhados, espantados, de biquinhos afiados.
        Com a atrapalhação, nem reparara naquele ovo grande que para ali se agitava. Mas eis a sua surpresa quando lá de dentro espreitou um biquinho, achatadinho, e um patinho amarelinho, desajeitado, saiu da casca do ovo meio atordoado.
        Có... có... có... có! Có... có... có...!    gritava a Pintada muito assustada. Não percebia aquele fenómeno. Que coisinha tão engraçada! Mas tão molengona...
        Piu... piu... piu... gemiam os pintainhos, muito espertinhos, já de penugem enxuta.
        A mãe galinha aconchegou satisfeita a sua ninhada. Ora ali estavam, sem tirar nem pôr, os seus doze filhinhos mais aquele desconhecido. Era fácil de ver que não pertencia à sua raça, não senhor. Mas que fazer? Não fora ela que lhe dera a vida?!
        E o seu tormento tinha começado. À noite, quando procurava abrigar do frio os pequeninos, lá saía ele, ligeirinho e acalorado, debaixo das penas da mãe à procura do fresquinho; e por ali se ficava, afastado das asas protectoras. A pobre mãe não descansava. Aquele maluquinho não iria apanhar um resfriado?
        O pior foi quando a dona trouxe a comida e um pratinho com água. O doidinho, em vez de comer, pôs- se a brincar: enchia o biquinho de água e sacudia-a por todos os lados. Os irmãos é que não gostavam da brincadeira. Ele, todo contente, só desistia quando lhe tiravam o prato da frente.   
Dois dias depois, a senhora Maria pôs os pintainhos no quintal, pertinho da capoeira; a galinha tratou logo de ir ciscar bichinhos para os filhos. E cada vez que apanhava um, chamava-os muito entusiasmada. Está bem. O patarrocho queria lá saber..., ou não percebia, ou fingia não perceber.
Cuá... cuá... cuá..., que língua aquela que aquele patetinha falava?! Estava mais que visto, não se entendiam. Então ela oferecia-lhe o cibato e ele corria a debicar ervinhas?! Aquele filho (seria mesmo seu filho?), só com muita paciência....
À tardinha, dirigia-se a Pintada, muito apressada, muito ligeira, com a sua ninhada, para a capoeira.
Lá vai o patinho no fim da fila, cambaleando, atrapalhado, muito atrasado. A Pintada pára a esperá-lo. Mas quê! O maroto caíu. A o subir um sulco, perdeu o equilíbrio, e ei-lo de patinhas para o ar a... dar a... dar... tal qual uma bicicleta voltada a... pedalar... a pedalar...
A mãe choca foi ao seu encontro e, duma bicada, pô-lo direito. Sacudiu a ponta das asinhas, firmou as patitas vermelhinhas e correu atrás da mãe, ainda mal refeita do susto. Os irmãozinhos piavam à volta daquele patetinha desastrado.
Chegara o mês de Abril ─ tardes lindas, cheias de sol! As Eiras, o prado verdejante que dava acesso à aldeia, cobrira-se de ervas tenrinhas e de margaridas de corolas branquinhas. Nos olmos, os passarinhos mantinham conversas com os seus filhinhos. Lá em baixo, cantava o ribeiro de águas mansinhas.
Para lá se conduziam as ninhadas que cresciam ao calor do sol primaveril, em plena liberdade.
Nesse dia, a Pintada passava pelas outras galinhas de pescoço erguido, muito orgulhosa da sua prole. Elas voltavam as cabeças, muito desdenhosas ao verem aquela coisinha esquisita que, pata aqui, pata ali, seguia atrás dos pequenitos. Que horror! Onde fora ela arranjar aquele besourinho! Seria moda criar um animalzinho tão desajeitado?!
Piu... piu... piu... ─ gritavam alegres os pintainhos.
Có... có... ró... có... ─ ia cantando, toda vaidosa, a Pintada.
Cuá... cuá... cuá... ─ respondia lá de trás o patinho amarelinho.
Que linda família! ─ dizia a galinha Pedrês que apenas tinha três pintos todos carecas ─ é preciso ter sorte para ter doze filhos daqueles, mais um diferente, mas tão engraçadinho.
Que abortinho! ─ replicava-lhe uma mãe frustrada e invejosa.
Ao chegarem ao meio do prado, o patinho saiu do grupo e pôs se a correr como um louquinho. Tinha ouvido o murmúrio do ribeiro lá ao fundo e ficara fascinado. A galinha mãe correu atrás dele apavorada.  Chamou, gritou, mas o rebelde não atendeu a rogos. Precipitou -se para o meio da corrente e nadou, mergulhou, dançou...
Pobre Pintada! Gritou por socorro a plenos pulmões: có... có... ró... có... có. Os irmãos, atarantados, nem acreditavam no que viam. O tolinho deslizava feliz na serena superfície da água: mergulhava a cabecita, espetava a mitrinha, sacudia as patinhas... Enfim: era um fartar de malabarismos.
Só então a mãe compreendeu que ele era completamente diferente dos outros irmãos. Deixou-o no meio da sua euforia e foi esgaravatar nas estrumeiras que os lavradores ali depositavam.
Os pintainhos ficaram cheios de admiração por aquele irmão tão corajoso, tão atrevido. E um deles, iludindo a vigilância da mãe, que de penas eriçadas, enfrentava o ataque dum corvo que pairava lá no alto, foi, sorrateiro, espreitá-lo. O brincalhão estava todo refestelado de patitas para o ar, gozando o calor do sol.
O pintainho pensou para consigo como seria bom mergulhar naquela água fresquinha. Sem hesitar, atirou-se lá de cima para experimentar. Rebolou como um novelo levado pela corrente. Foi só o tempo do patinho saltar para água e salvar o imprudente.
A mãe galinha vinha aflita à procura do desertor. Deparou-se com aquela cena e ficou paralisada. Afinal aquele monstrinho amava os seus irmãos. Era diferente, sim, mas igual: era seu filho, pertencia à sua família, integrara-se nela e acabava de o provar.
Daí por diante, passou a acarinhá-lo ainda mais e aceitá-lo como um verdadeiro filho ─ extravagante, sim, mas querido. Não falavam a mesma língua, é certo, mas unia-os os mesmos sentimentos.
Uma tarde, quando todos brincavam nas Eiras, cada um à sua maneira, eis que surge uma família de gansos: a mãe à frente encaminhando a prole, o pai vigilante à retaguarda. O patinho ficou deslumbrado: correu a toda a pressa para o grupo. A Pintada compreendeu...
Os gansos saudaram-no com afecto e adoptaram-no como filho ─ cuá... cuá... cuá... gritavam contentes os gansinhos, agitando as caudinhas.  E os irmãos, surpreendidos e tristes, assistiam de longe a toda àquela manifestação de alegria.
A Pintada nem olhou para trás; pegou nos doze filhinhos e foi andando para casa. O outro fora-se para sempre.
O patinho desastrado, desorientado, e de tudo já saturado, quando viu lá longe a Pintada e os filhotes, correu como um danado. Nem se despediu dos seus.
Afinal, chegara à conclusão que fora aquela quem o gerara, quem o criara e o acarinhava, sofrendo com paciência as suas extravagâncias, as suas diferenças. Era ela a sua verdadeira mãe. Eram aqueles pacíficos pintainhos os seus verdadeiros irmãos
A Pintada ficou pasmada quando o viu lá em baixo a correr aflito e exausto. Comovida, abriu as asas para o receber.   
 
Amélia Ferreira-Pinto
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