 |
Leonel Brito e Dórdio Guimarães com "Florbela Espanca".
Rodagem do documentário realizado pelo Dórdio e
texto de Natália Correia |
“Que festival de mulher te expandes, sou já celebridade ao olhar-te”.
Dórdio Guimarães
Poeta menor, sobretudo em
confronto com os que enriqueceram a nossa literatura lírica na segunda metade
do século vinte, Dórdio Leal Guimarães nasceu no Porto em 1938, quinze anos
depois daquela que, vinda dos Açores ainda criança, haveria de fazê-lo esperar
trinta e oito anos. Por ela se apaixonou com catorze, com ela travou
conhecimento aos vinte e quatro.
Como escreve Inês Pedrosa, “ (…)
depôs-lhe nas mãos a sua vida, incluindo todas as suas múltiplas aspirações
artísticas. Ela tinha o impulso criador, ele tinha o desejo de o ter”.
Poetou-a nos livros publicados
com o nome de Cynthia. Após a morte da sua deusa abandonou a escrita de que ela
foi a única musa inspiradora.
Depois de dois casamentos
efémeros e de um duradouro (39 anos) Natália Correia aceitou casar com ele,
curiosamente por sugestão do homem que os amigos consideram ter sido o grande
amor da sua vida: Alfredo Machado. Por horror à solidão, ela que era incapaz de
dormir sozinha por medo dos fantasmas. E porque, como justificou, por
considerá-lo a única pessoa capaz de organizar e catalogar a sua obra. Não
nutria por ele mais que um ligeiro afecto, como pode ver-se num soneto que lhe
ofereceu com a dedicatória “Ao Dórdio, meu irmão”, espécie de resumo irónico de
uma história de vassalagem amorosa.
O
BEIJO DE ANTIKONIE
Foi no mês alumbrado dos
bruxedos
o ardente encontro. Estava eu nos trinta.
Abrasavam-te vinte chamas
verdes
e enluarado me chamaste Cynthia.
Como uma puma pelos meus
vinhedos
sedoso e hábil me laçaste a cinta
e encantaste-me em sala de brinquedos
da tua boca bárbara e faminta.
Mas declino e o Anjo de
alabastro
tatua-me na fronte o frio astro
que a tormenta do sangue anestesia.
Ó trémula beleza sem apoio!
Fiz-te pássaro e mato-te no
voo.
Não me culpes, amor. Foi bruxaria.
Se Dórdio foi o homem que Natália
desposou, por interesse ou comiseração, aos sessenta e sete anos, se Alfredo
Machado foi o cavalheiro galante que lhe transmitiu serenidade e com ela
partilhou intensa vida social e intelectual, tendo sido, além de amante (no
sentido etimológico do termo), uma espécie de pai que não teve, a sua grande
paixão foi um primo açoriano vinte e cinco anos mais novo – José António
Correia. Viveram oito anos na mesma casa, como amantes fogosos, divertindo-se
com um jogo de casamento fictício, celebrado com dispensa de testemunhas.
Durante os dois anos em que o
jovem que a amou sofregamente esteve na Guiné a cumprir o serviço militar,
escreveu-lhe ela 218 cartas arrebatadoras nas quais ele surge como um misto de
anjo e de objecto de gozo carnal. Atente-se no extracto de uma delas: (…)
“Está-se a dar um milagre comigo; julguei que não podia amar à distância, mas
afinal de contas é possível.
Tu conseguiste esse milagre. É
certo que o eco do teu amor chega-me incessantemente, estimulando o meu. Nunca
deixarás de o fazer? Pois não, meu maridinho adorado, meu primeiro homem, meu
Adão de arminho e pássaros. Ontem a tua voz ao telefone derramou-se no meu
sangue como fogo. Oh, beijo-te, beijo-te, entrego-me à fome do teu corpo e
volto a renová-la sempre mais, amor. (…) Amo-te, amo-te, violentamente,
ternamente, tudo”.
Esclarecedor quanto ao ardor
passional é, também, o poema que se segue:
Para
o José António
Tu és o meu regato e o meu
vulcão,
eu sou a tua pomba, a tua cobra
e os nossos gestos são a proporção
de
um sentimento de fogo e solidão
em
que nada nos falta e nada sobra.
A nossa estrela é estarmos condenados
pela perfeição que os ossos nos reclama
a morrer um no outro extasiados,
anjos gravados na pedra de uma
cama.
Quem era essa “mulher-menina,
mulher fatal”, como lhe chama Clara Rocha? Diz quem a conheceu ou simplesmente
a viu nos cafés, bares e ruas de Lisboa ser uma das mais bonitas da capital
onde esbanjava a sua sensualidade, despertando ardentes paixões tanto em homens
mais velhos como em adolescentes que a endeusavam e se lhe prostravam aos pés.
Tinha, pois, uma corte de admiradores de que se vangloriava, exibindo-os,
vaidosa, como troféus. Bela, exuberante, provocadora, era “uma deusa rodeada de
sacerdotes ou veneradores”. Coquette mais do que o normal, segura
dos seus atractivos, exercia um irreprimível poder de sedução.
Afrontando, em jeito de desafio,
os preconceitos da moral vigente, fumava por uma longa boquilha, sua imagem de
marca, e exibia o seu colo desnudado, para além do limite do decoro, aos
olhares concupiscentes de quantos, esperançada ou desperançadamente, a
cortejavam.
Não obstante o que fica dito, não
era sem constrangimento que a poeta se apercebia de que a sua beleza física se
sobrepunha aos seus dotes de mulher de cultura aos olhos da opinião pública.
Paradigmático quanto a tal facto, a reacção intempestiva perante as palavras
com que Mário Soares iniciou o seu discurso ao galardoá-la com a Ordem da
Liberdade: “Não me diga que eu era muito bonita, já sei que só olhava para o
meu corpo”.
E, insurgindo-se contra a sua
fama mítica de “predadora” de homens, escreve:
Essa asquerosa lenda é a herança de uma
mentalidade que subsiste, mentalidade essa que, valorizando o meu aspecto
físico, obscureceu o meu valor intelectual.
Acrescente-se o que o referido
político registou no prefácio do livro Retrato de
Natália Correia, de Ângelo Almeida e publicado pelo Círculo de
Leitores:
Nesse tempo, em que a Natália
começava a abrir caminho nas Letras, vinda da sua ‘Pátria Açoriana’ para se
fixar numa Lisboa pacata, mas em plena ebulição, e fumava por uma enorme
boquilha, com os seus ares dominadores e os seus pronunciados decotes, não era
fácil perceber que estava ali uma das personalidades mais marcantes do último
meio século da vida cultural portuguesa.
Bibliografia: PEDROSA, Inês, “O Amor
Louco de Natália Correia” in REVISTA
EXPRESSO nº 1298
de 13 de Setembro de
1997.