04 novembro 2014

A importância da Memória dos povos, por António Chaves

Sem memória não há passado nem futuro. Tudo se reduz ao imediatismo.
- Que importa a memória do passado, das pessoas e dos povos, se tudo isso pertence já ao domínio do inalterável?
Évariste Galois é um caso trágico mas revelador da importância da memória. Aos vinte anos, e apenas cinco depois de se dedicar em exclusivo a estudar matemática, consegue fazer frutificar uma original e ardente paixão, ao determinar a condição necessária e suficiente para que um polinómio possa ser resolvido por raízes; não só resolveu um antigo problema em aberto, como criou um domínio inteiramente novo da álgebra abstrata: a teoria dos grupos.
Por essa altura é atraído por uma dama que estava noiva. Stephanie já estava comprometida com um cidadão chamado Pescheux d’Herbinville, que descobriu a infidelidade de sua noiva. Furioso e sendo um dos melhores atiradores da França não hesitou em desafiar Galois para um duelo ao raiar do dia seguinte. Évariste conhecia a perícia de seu desafiante, com a pistola. Na noite anterior ao confronto, que acreditava ser a última oportunidade para registrar suas ideias no papel; ele escreveu cartas para os amigos explicando as circunstâncias...”eu cedi à provocação que tentei evitar por todos os meios". Um dos seus maiores temores era que sua pesquisa, rejeitada pela Academia, se perdesse para sempre. Numa tentativa desesperada de conseguir reconhecimento, ele trabalhou a noite toda, escrevendo o teorema que, acreditava, explicaria o enigma de uma equação do quinto grau. As páginas eram, na maior parte, uma transcrição das ideias que ele já enviara a Cauchy e Fourier, mas sem os detalhes explicativos da complexa álgebra explanada. Naquele turbilhão da noite foi fazendo referências ocasionais obre o seu estado de espírito e exprimindo exclamações de desespero.
 – "Eu não tenho tempo, eu não tenho tempo!" No final da noite, quando seus cálculos estavam completos, ele escreveu uma carta explicativa ao seu amigo Auguste Chevalier, pedindo que, caso morresse, aquelas páginas fossem enviadas aos grandes matemáticos da Europa.
Na manhã seguinte, Quarta-feira, 30 de maio de 1832 num campo isolado, Galois e d’Herbinville enfrentaram-se a uma distância de vinte e seis passos, armados com pistolas. D’Herbinville viera acompanhado de dois assistentes, Évariste Galois estava sozinho. Ele não contara a ninguém o seu drama. As pistolas erguidas, dispararam. D’Herbinville continuou de pé. Galois foi atingido no estômago. Ficou a agonizar no chão. Não havia nenhum cirurgião por perto e o vencedor foi embora calmamente, deixando seu oponente ferido para morrer. Algumas horas depois Alfred chegou ao local e levou seu irmão para o hospital. Era muito tarde, já ocorrera uma peritonite e no dia seguinte Galois faleceu. Antes de morrer disse para seu irmão: "- Não chore, preciso de toda a minha coragem para morrer aos vinte anos".

O contributo para o progresso do conhecimento humano não teria sido o mesmo se não tivesse passado a noite a registá-lo, como memória. E aqui surge uma outra dimensão da mesma memória: a sua passagem a escrito que, de outra forma, não poderia perdurar.
Ocorre-me o que sobre este tema disse um dos mais distintos - A palavra falada é o encanto de mães e filhos; mas a verdadeira palavra do homem é a palavra escrita, porque só ela é imortal.
Quando temos pela frente um povo sem voz, na sua grande maioria analfabeto, temos já hoje, felizmente a possibilidade de prolongar o seu pensamento, de conservar o relato da sua experiência e das condições de vida, da angústia e da esperança, imortalizando um tempo e uma forma de viver, que se poderá sempre revisitar.
Os nossos antepassados celtas desenvolveram uma civilização avançada. Foram inovadores na tecnologia do bronze e do ferro, criaram um dos maiores domínios territoriais de sempre na Europa, venceram e saquearam Roma. Mas hoje sabe-se pouco sobre a sua história, a sua trajetória, a sua cultura.
- Porque é que isso aconteceu e que reflexão nos pode aportar?
 – Satisfação de uma simples curiosidade?
- Muito mais que isso!
A primeira tarefa da educação é saber quem somos, é aprender a olhar para nós mesmos e saber como produzir mudanças.
Os chefes celtas entenderam que cultivar a escrita da língua, era desenvolver menos a memória. Júlio César refere esse aspeto, dizendo: eles não desejam que o seu sistema se torne comummente conhecido, nem que os seus aprendizes, apoiados pelo registo escrito, deixem de exercitar a sua memória; e de facto acontece que os que dependem de documentos escritos são menos industriosos em aprender de cor e têm uma memória mais fraca.
Quando não falamos nós, alguém fala por nós e sobre nós. Foi o que aconteceu aos celtas. O pouco que sabemos devemo-lo em grande medida aos historiadores e geógrafos gregos e romanos que os referiram nos seus relatos. Todavia é hoje entendido que muitas das suas análises são culturalmente erróneas e depreciativas da civilização celta, como acontece frequentemente quando se fala de opositores e inimigos. Os gregos e os romanos representam os celtas como um povo bárbaro, como uma sociedade destemida e guerreira, orgulhosa e ignorante, vivendo sem opulência, dados a entretenimentos pueris e frequentemente embriagados.
Estudos recentes dão-nos conta de que 55% dos portugueses atuais são descendentes dos celtas. Alguém sente orgulho ao ouvir o que gregos e romanos disseram sobre os celtas? Felizmente hoje são conhecias realidades desta civilização que repõem assunto no lugar que ela merece. Infelizmente, em Portugal continuam escassos os conhecimentos sobre estes nossos antepassados, mais uma vez porque não se deram ao trabalho de registar por escrito o tempo que viveram.
Que nos sirva de exemplo e não permitamos que que gente menos escrupulosa diga atoardas sobe o povo barrosão que somos, muitas vezes exagerando sem conta, com a única pretensão de impressionar o leitor e mostrar o seu talento para a escrita. Se não soubermos de onde viemos não saberemos também para onde vamos. E essa é, a meu ver, a maior dificuldade com que presentemente nos debatemos, vacilando na escolha do caminho a trilhar, sem auto estima bastante para cimentarmos, no seio da sociedade, um sentimento de confiança básica, indispensável para seguir em frente.

António Chaves 

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