14 novembro 2014

POESIA REUNIDA, de Adelino Torres - Prefácio de Maria Manuela Araújo

Prefácio
Poesia Reunida (2014) é o maior conjunto poético de Adelino Torres, uma voz relevante da poesia contemporânea. Reúne toda a poesia escrita entre 2005 e 2014, seis livros publicados de poesia, e inclui Reserva de Memória (Livro VII), uma série de poemas inéditos, com dois poemas da pequenita Adèle Lambert, sua neta, que aqui se dão à estampa. A poética de Torres foi-se construindo pela força inerente à sua vivência de margem. Refractária ao gregarismo que a proscreveu, insistiu caminhar para outros centros: «Que «força nova»?»[1], pergunta, curiosamente, Manuel Ferreira. Ao revés, Alfredo Margarido e António Jacinto perceberam, de outra forma, que o carácter subversivo deste discurso poético era a razão da inactual versatilidade que ainda o caracteriza, nas memórias que guarda e nos diálogos que estabelece, com amigos, escritores, autores, em outras geografias. Poesia Reunida é um ponto de chegada no trajecto desassossegado do poeta, encontro de idas e vindas, reunião de sete livros de poesia, publicados entre 2008 e 2014, escritos poéticos que ainda se cruzam, em conversa imanente, com outros anteriores, de sua autoria. Pensando no título do Livro VI, A Caminho do Sul (2013), e fazendo a expansão da sua metáfora poética, digo que escapar a Sul, ou fora de vigilância, é falar a mesma língua das diásporas discursivas que contestam. Mas afinal, que poeta é este? O que corre de um lado para o outro e se espalha para diversos lados. E que poética? a que corre no reverso da tranquilidade dos discursos aceites.

Adelino Torres é membro da Academia Internacional de Cultura Portuguesa, professor catedrático, economista, africanista, académico inconformado e de persistente dedicação ao conhecimento científico, em que se fundou a sua longa carreira académica, laureada, em 2014, com sete livros sequentes de poesia. Adelino Torres é também poeta, ou, ao invés, poeta primeiro, o poeta que, nos anos 50, a palavra encontrou no fastio dos números[2]. Angolano, português, francês, universal, uma identidade múltipla que cedo encontrou na poesia a mais firme pertença. Seria mutilador não aludir à sua obra científica, que tanto iluminou a Academia e, por essa razão, transpôs os seus muros. Do seu diverso e longo itinerário, falemos agora da entrada do poeta na ala literária de Babel, que não é de marfim, mas sim, fadário laborioso dos que no emaranhado dos sentidos buscam, pelo menos, um Sentido: o Sentido que nasce da incessante pergunta do espírito grego, iluminado pelo outro Hermes divino, ou princípio da linguagem, Exú‑Elégba.   
No domínio literário, assinalam-se os primeiros cinco poemas, publicados em Força Nova: Colectânea de Poesia de Estudantes de Luanda[3], e do conto «Retour à la Source»[4], na revista Nouvelle Revue Française, bem como de outros três poemas em Encontro‑Revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco[5]. Após várias décadas de fértil produção científica, em 2008 Torres dá continuidade à publicação da sua escrita poética, com o livro Uma fresta no tempo seguida de Ironias[6]. Daí em diante, não mais abandonou a fonte poética de água viva: em 2009, vem a lume Histórias do tempo volátil[7], um livro prefaciado por Alfredo Margarido e ilustrado, na capa, por Eleutério Sanches; em 2010 sai Cantos do crepúsculo (Poesias – Livro III)[8] e em 2011 Tempo irreversível (Poesias – Livro IV)[9], ambos prefaciados por José Carlos Venâncio; em 2012 publica Memórias do futuro e do tempo (Poesias – Livro V)[10], prefaciado por José Filipe Pinto, com posfácio de José Carlos Venâncio e ilustração de capa pelo pintor Jaime Braz; em 2013 dá à estampa A Caminho do Sul (Poesias‑Livro VI)[11] e em 2014 reúne, neste volume, não só a sua produção poética publicada desde 2008, como também inova com Reserva de Memória (Poesias‑LivroVII).     
            Embora exista um silêncio entre Força Nova e Uma fresta no tempo seguida de Ironias, o certo é que, daí em diante, a militância do poeta na palavra justa e democrática ganhou confiado poder, por se ter oposto, de forma assídua e audaz, à repetida e vã «palavra do poder»[12]. No mesmo rasto de Philippe Breton, também Adriano Moreira faz o elogio da palavra livre, no discurso de comemoração do seu 90º aniversário, elogio a que se junta Torres, em defluência no poema «17 – O poder da palavra numa outra Europa», do Livro VI. Referindo-se ao início do percurso literário do poeta, José Carlos Venâncio aponta, todavia, uma relação de continuidade entre Força Nova e os três livros de poesia que, só mais tarde, se seguiriam: «A sua escrita, nestes três livros, continua, de certa maneira, a experiência dos fins dos anos 50, altura em que terão sido escritos os poemas constantes da antologia Força Nova[13].
            Uma fresta no tempo seguida de Ironias e Histórias do tempo volátil são obras próximas, não só no tempo de publicação, mas, sobretudo, na forma como ambas se completam e implicam todo o corpus poético de Torres, através da mimese unificadora, que apreende do ser o sonho, no tempo da vida humana. A poética em apreciação é a frincha que o poeta abre na parede do tempo presente, de onde espreita um passado que marcou a sua memória com uma geografia que sempre lhe foi, e é, muito cara: África. A África a que tanto se arreigou, mas que tanto o desiludiu. Angola, identidade da primeira infância até à idade adulta, ou como disse Maria Virgínia de Aguiar, redactora do jornal de João Charulla de Azevedo, «Era uma vez uma cidade robusta, soberba, bem amada de muitos e de poucos conhecida: Luanda. As suas entranhas maternais, que se lavam na grande bacia do Atlântico; o seu recorte mágico entrevisto do pescoço altivo que é a Fortaleza, apoiam‑se em pés de trapo: o musseque.»[14]. Era em Luanda, em finais dos anos 50 e pelos anos 60, que se encontrava Torres e que Virgínia encontrou Cordeiro, um poeta e um pintor, entre outros vagabundos do sonho, avessos ao materialismo burguês e, tal como Baudelaire, amantes de uma outra pátria: a poesia. Luanda foi também a quimera real que a cabeça inquieta de Torres pintou: da Maianga a S. Paulo, da Mutamba à Vila Alice, no pregão do cauteleiro marreco, ou em monólogo com o mar; as picadas vermelhas que pisou e que o cacimbo dos anos não diluiu, como não diluiu a imagem dos embondeiros pachorrentos, do rapaz que apanhava visgo para caçar o beija‑flor, com o Abel Sanda de Cabinda, das maçãs da Índia e das castanhas de cajú roubadas, nas barrocas de Luanda, pintadas de vermelho, com mandioqueiras a espreitar o porto e a ver chegar os navios, carregados de colonos que sonhavam patacas, ou das máscaras de carnaval, a desfilar nas ruas… E como que descrevendo o irregular círculo da vida, com a mais corajosa independência, caminhou o poeta para Sul, chegando ao lugar de partida, à casa onde viveu com a família, lembrada no Livro VI, em deambulações pelo Bairro do Cruzeiro, corporizadas no poema «28‑Recordação Indelével». Luanda, dos anos 50 e 60, levou mãos prodigiosas, de poetas, de pintores, músicos e outros criadores, foi berço artístico de simbioses, ou a cidade boémia que Virgínia de Aguiar, em 1969, caracterizou de «a perdulária»[15]. Porém, as nuvens que o extraordinário estrangeiro de Baudelaire amou, passaram… lá ao longe… as maravilhosas nuvens !.. e Angola, bem como outros países africanos, ganhou outra latitude.
Na sequência deste processo, a voz de Adelino Torres foi crescendo descontente, ao lado das diásporas contestatárias pós‑coloniais, as quais, dizendo pelas palavras de Francisco José Tenreiro, aguardam ainda «de coração em África», insistindo na pergunta de Ki‑Zerbo: Para quando África ? Os fanatismos ideológicos que aniquilaram o espaço humano de África e obrigaram o poeta à experiência política do exílio, sonho e desilusão que também vive relativamente à Europa e, particularmente, a Portugal, pois, seguindo as suas reflexões, a primeira parte do primeiro livro «[…] traduz um estado de espírito onde se entrechocam esperança e revolta, consciência da finitude e inquietação, desespero e combate.» (Torres, 2008, p. 7). É esta a dolorosa fresta que também separa sonho e realidade, configurando‑se, simultaneamente, abertura por onde o sonho vigia e aguarda ser realidade. A fresta operada no tempo afigura-se limiar entre sombra e claridade, passagem para o estado de vigília, ou seja, para o hemisfério do tempo, o meio privilegiado do sujeito, a via por onde caminhar, pois dizendo pelas palavras de Maria Zambrano, «O meio do sujeito humano […] é a temporalidade» e, continuando o pensamento da filósofa, «Aquilo que é decifrado entre os sonhos e o tempo é a vida humana»[16].  Assim, o sonho no tempo de vigília é o lugar onde o sujeito padece a sua própria transcendência, ou seja, a dor da passividade, da não‑realidade, por não ter percebido a tempo que a vivência extraordinária de qualquer «estado nascente»[17] pode estar apenas imanente em nós, e não naquilo que elegemos como nosso objecto de Eros.
            A poética do tempo em Torres alarga a sua geografia semântica a Histórias do Tempo Volátil (Livro II). Histórias são narrativas, aqui contadas em poesia, histórias de vida, memórias, ou o pulsar do ser no seu tempo de vida, um tempo que o sujeito poético, no poema «50 - Passagem», diz ser «[…]volátil como a morte», ou o tempo que trai a vida de quem tem uma missão séria. No poema «9 - O Ser e o Tempo», o tempo vivível é fogo fátuo, também metaforizado em jaula. Diz o sujeito poético: «O ser/vive e morre/ dentro da jaula do tempo.//A duração perseguida/no horizonte do ser//é a essência transitória/do fogo fátuo da vida…». A temática isotópica do tempo continua a percorrer o rio da escrita de Torres, cuja forte colocação subjectiva também se introduz como voz de testemunho, instância ilocutória activa que fica para contar, memória lavrada na escrita, um sujeito enunciador que, da ciência gera substância poética, em torno dos pares semânticos: utopia/distopia, ilusão/desilusão, esperança/desencanto. São estes os binómios em que se funda a rede sémica do inconformismo no tempo e com o tempo real, um sentido extensível a toda a obra, mas que o poema «26 - Conformismo» sintetiza.  
            As dicotomias mencionadas urdem uma fala poderosa, plurilinguismo na linguagem poética, uma fala que só pode ser inteiramente entendida em função do lugar (prático, ideológico, teórico, ou outro) de onde se fala; e ainda em função do facto de se falar sempre em nome de qualquer coisa (da ciência, da verdade, do bom‑senso, ou de uma determinada ideologia). A escrita em análise fala do lugar prático da vida e do conhecimento, em nome de uma verdade existencial esclarecida. Cumpre, assim, uma função pública fundamental, sendo educativa. É discurso social, cultural, político e até económico, de um centro que questiona outro centro, são escritos que visam uma hegemonia, caminhando, de forma salutar, para aquilo que sobre Roland Barthes, Eduardo Prado Coelho designa de «Guerra das Linguagens»[18], o lugar em que a poesia cumpre o seu papel mais nobre.
            A poética de Torres é uma poética que elege a vida real, contingente, como seu referente principal, colocando em avaliação o tempo presente, passado e futuro, a vileza humana, no que a (auto)destruição criativa contém de mais ameaçador. A realidade semiótica sobre a qual se reflecte é uma escrita que cria instabilidade ao senso comum, feito ideologia dominante, ao saber vacilante, aos estereótipos do consumismo e da superficialidade da imagem, que são Narciso apaixonado por si, ou eternizado na ilusória circularidade de si próprio. Uma escrita que sustenta o conceito metaforizado de «império do efémero» e «era do vazio», de que fala Gilles Lipovetsky[19], bem como outros críticos da Modernidade, um olhar preocupante, mas que, oportunamente, a erudição de George Steiner veio equilibrar em A Ideia de Europa[20], uma útil lembrança ao velho continente, agora mais vulnerável à amnésia cultural.   
            Dos dis-cursus que este sujeito poético engendra, do que ele corre dentro da sua cabeça e desenha com o fio coreográfico da escrita, ganham relevo figuras discursivas que se agitam em contestação dos poderes instituídos, siderados no seu exercício político irresponsável, as figuras da tirania e da liberdade, da ignorância, da futilidade, entre outras. A tirania de alguns ditadores africanos, tratada no poema «1 – Seres inamovíveis», onde se lê: «[…]seres inamovíveis/ da autenticidade africana/que afugentou sábios e matou deuses» , levando os africanos fugidos, designados no título do poema 63 por «migrantes da morte», pela «[…] travessia desesperada do Mediterrâneo/ e da costa africana para as Canárias/ em precárias embarcações superlotadas/ de refugiados vindos da pobreza africana;[…]». A mencionada figura da tirania encontra também eco na Europa, particularmente na caracterização do bispo Williamson, que negou o holocausto judeu, e que o sujeito poético confronta, de forma irónica, na composição «49 - O Macaco de Darwin», dedicada a Alfredo Margarido: «[…]De facto, que culpa pode ele ter/por não saber essas coisas?/É preciso ser-se um ás/ou incarnar nesta vida/um grande sábio ou doutor/para distinguir um forno a gás/dum modesto grelhador/ou conhecer a distância/entre um campo de concentração/e um mero jardim de infância.».  Em contraposição, a figura discursiva da liberdade, desenhada no poema 38, do mesmo nome, a futilidade e a crise de valores, particularmente coreografadas no poema «6 - Novos Valores», uma espécie de desconcerto do mundo, ao qual, e à escala do cosmopolitismo global, também a Academia não escapa, esta fechada na falsa importância dos seus Doutores, ou o milagre de Bolonha, outras vezes nem isso, predadores da inovação científica de cérebros, que plagiam e escondem, um estado de decadência dissimulado na reflexão prospectiva, consubstanciada na composição poética de título «10‑Academia».
            Se as figuras discursivas, ou cenas de linguagem, apresentadas por Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso[21], são recortadas na enunciação do imaginário do sujeito apaixonado em trabalho de linguagem, na poética de Torres as figuras referidas foram antes isoladas no discurso de um eu social, cultural e político, em agitado labor de consciencialização do tempo real, uma prática escrita de intervenção, claramente verificável no poema «147 - Consciência Nacional». A bem‑aventurança das figuras literárias em menção é o facto de estas serem signos susceptíveis de memória no tempo, logo, impedirem a reificação de lugares comuns que alimentam o maravilhoso “conto de fadas” da ideologia governante, aquilo a que o poeta, no poema «40 – Economismo», chama de «Olimpo da perfeição».
 As figuras literárias de Torres têm a utilidade atávica de facultarem, por exemplo, a recordação daquilo (o holocausto nazi) que o bispo Williamson pareceu esquecer. Para que a história continue legível, o eu textual, insuflado pelo autor empírico, abre também, no Livro VI, uma fenda, na fóssil fala falada do bispo e, com a sua voz íntima, no poema «7 - Atavismo», impede a sua repetição: «O passado pesa/como uma âncora inerte/no cérebro dos vivos//e não basta sacudi-la/ para que então se liberte/ do lodo que a retém». A deflação histórica da memória cultural, como tema, é um dado narrativo da estrutura sémico‑formal da poesia em análise, a qual serve de pretexto para a revelação da paisagem interior do sujeito, que do lado subversivo da língua fala, ou canta, o crepúsculo civilizacional que vive, e que antevê para a Humanidade. O título do Livro III, Cantos do crepúsculo, bem como o seu conteúdo semântico, colaboram na consistência da referida simbólica do tempo, enunciada desde o primeiro sopro experimental de Torres, em Força Nova.
 A colectânea de poesia acima mencionada, publicada em 1961, reúne poemas de 17 estudantes pré‑universitários, sob desconfiança da PIDE, por comungarem da mesma indignação internacional, em véspera da Revolta Armada de 1961. Dizendo pelas palavras de Torres, eram «jovens revoltados contra o fascismo e o colonialismo português […], numa época muito vigiada, uma revolta muito mais valiosa do que o conformismo (e reaccionarismo), ambiente que dominava a generalidade dos brancos de Angola nessa época.»[22]. Entre os seus participantes, figuram nomes que se vieram a destacar no panorama político e literário do nacionalismo angolano, tais como António Jacinto Rodrigues, Carlos Alberto Octávio Belo, “Caobelo”, João Abel e António José Rodrigues. Os seus primeiros poemas, «Cavaleiro do sonho», «Pescador», «Para um epitáfio», «O Corcunda» e «O último poema», foram escritos nos finais dos anos 50 e prestam um contributo à chamada Geração Moderna, de cujos poetas sofreram influência estética e ideológica, especialmente dos poetas pertencentes ao «Movimento dos Novos Intelectuais de Angola», cujo projecto cultural, designado «Vamos Descobrir Angola!», teve como objectivo questionar a sociedade colonial.
 No rasto de Tomás Vieira da Cruz (1900-1920), a Geração Moderna, pelos anos 40, 50, 60, e mesmo 70, ficou marcada pelos poetas nascidos entre 1920 e 1928, Aires de Almeida Santos (n.1921), Agostinho Neto (n. 1922), Alexandre Dáskalos (n. 1924), António Jacinto (n.1924), Maurício Gomes (1920), Mário Pinto de Andrade (n. 1928) e Viriato da Cruz (n. 1928); bem como pela geração de 30, à qual pertencem Alda Lara (n. 1930), Ernesto Lara (Filho) (n. 1932), António Cardoso (n.1933) e Mário António Fernandes de Oliveira (n. 1934). É aos arautos sonhadores da Geração Moderna, os «Peregrino(s) do Ideal», ou grito da nova proposta literária nacional, que a enunciação imperativa de Torres se dirige, em Força Nova, no poema «Cavaleiro do Sonho»: «E não pares poeta, /não pares!» (Torres, 1961, p.23). Mas é também, a si, que se alenta. O poeta que, neste primevo processo de significação, é encorajado a correr, afigura-se uma entidade subjectiva de eu, que fala na 3ª instância, ou seja, um ele, que é eu e poeta. O jogo de trocas discursivas em menção confere corpo e voz a um sujeito, que abraça na poesia a luz de que fala, nesse tempo solar, mas agora limiar, o crepúsculo vivencial e civilizacional, evidenciado na experiência simbólica que Cantos do crepúsculo continua na sua substância poética. Por conseguinte, os quatro primeiros poemas de Torres são, sem dúvida, uma “força nova”, que assegurou, em 1961, o célebre repto de Viriato da Cruz, «Vamos Descobrir Angola!», lançado em 1948, e cujo órgão literário foi a revista Mensagem. Extrapolando à volta do dialogismo semiótico, contido na estrutura semântica «ir descobrir/sem parar», em que se inscreve o sentido de iniciativa criativa na semântica da movência, presente nos desafios de Cruz e de Torres, vale dizer que, em exercício de anamnese intelectual, a linguagem artística de Torres se abre à irrupção dum texto noutro texto, uma hábil laboração estética de ampliação semântica, que também responde à urgência do apelo proferido por Maurício Gomes, no poema «Exortação»: «É preciso inventar a poesia de Angola!»[23]
Atentar no destino nacional, por descuido com os desígnios da nação, vem a ser temática glosada, cinquenta anos depois, em Cantos do crepúsculo. De forma dramática e paródica, o sujeito poético vai sublinhando as consequências do consentir político dos cidadãos e dos Estados, face às manobras transnacionais de corporações económico‑financeiras, às quais o ultraliberalismo abriu atalhos, bancarrota e servidão das gerações vindouras, por absentismo da Justiça, e em clima global de terror islamita. Da recepção da poética em referência, fica-nos a sequência de sentido: o tempo que vivemos é o tempo de quem não se implicou devidamente, dos que permaneceram a vaguear sem rumo e foram surpreendidos pelo acaso do vazio social, cultural e político. Actualizando o passado no presente, para dele ouvir uma lição, cabe aqui recordar que, se Maurício Gomes foi, na altura, ameaçado pela PIDE e, ao receber o recado, «-O Maurício Gomes que se deixe de poesias!..»[24], teve de pensar na família numerosa que tinha, outros poetas houve, contemporâneos de Torres, que na desobediência sagraram a poesia e o nome de Angola no exílio. A palavra pública sem medo de intervir é um ganho recente. Contudo, é um bem ameaçado, se a escrita for inútil, ou seja, superfície reflectora de Narciso ensimesmado, falando sozinho. Por essa razão, a efusão lírica de Cantos do crepúsculo é o cântico do eu, ou do cisne, negro, que é toda a obra poética de Torres, cântico do fim, de um tempo de vida humana e de todo um legado civilizacional mundial, prestes a sucumbir a poente dos tempos. A palavra de Torres afigura‑se matriz subjectiva de tempos que se findam, não só o tempo biológico, o qual, ao revés da metáfora de Zambrano, não é «vida que viaja como água deslizando num plano liso» (Zambrano, 1994, p.83), mas também de um tempo histórico, ou do fim da história, marcado pelo fazer político e económico, este dirigido pela radical ilusão totalitária que, segundo Boaventura de Sousa Santos, na sua versão última, é neoliberal e pretende «destruir toda a humanidade com a ilusão de a salvar»[25].
 Deste tempo de saturação histórica, que ensombra não só a Europa, mas todo o Planeta, deseja Torres despedir-se em Memórias do futuro e do tempo (Poesias‑Livro V). O discurso memorialista do poeta prossegue no livro em menção, convocando o tempo passado, actualizador de lembranças, bem como o tempo futuro, antecipador das acções do eu e dos outros, numa chamada de presenças humanas que marcaram o seu curso existencial. O sujeito poético memora familiares e amigos, também filósofos e homens de outras ciências, tais como o aristotélico Averróis, Heidegger, com cuja ontologia, em Sein und Zeit, dialoga; o matemático e filósofo Alfred Tarski, Rousseau, o polímata persa Avicena, Schopenhauer, de cujo pensamento poetou as ideias de «insatisfação» e «representação», presentes em The World as Will and Representation; o filósofo Hans Jonas, o poeta Henrich Heine, Paul Ricoeur; o seu amigo íntimo Philippe Béraud, economista, professor e sociólogo, o filósofo anti‑nazi Jean‑Marie Domenach e o juiz, magistrado no Tribunal de Nuremberga, também ficcionista, Casamayor. Do círculo intelectual em que se move em Portugal, merece saliência o Professor Adriano Moreira, a quem se refere, no poema «30 – “Mercados” no plural», como «[…] humanista e democrata, Mestre dos mestres, cujas lições perdurarão muito para além de nós […]». Nesta complexa viagem pelo tempo, em que o passado afecta o presente e o presente o futuro, é demasiado persistente a preocupação com o obscurantismo dogmático, teológico, ou outro, não explicável pela Razão, como por exemplo a composição poética intitulada «35 - Razão discursiva», um vector semântico que nitidamente se desenha como isotopia poética. A Razão a que apela este eu lírico é, todavia, uma «vontade envolta em dúvida», coerente com as correntes de pensamento modernistas, prática escrita de revelação moral, em que o poeta se consome, e se torna singular na indagação profética de «5 - Se», o fim anunciado do mundo e do Homem, que não leu Rudyard Kipling, e se excedeu na mera «vaga de tecnicismo». A voz que critica este exagero é a mesma voz que condena as soluções finais, extremadas, conduzidas pela ciência perversa, manipuladora da Razão, que Torres combate no poema com que inicia o Livro VI: «2 - Recordando Hiroshima».               
            A Caminho do Sul (Poesias-Livro VI) acentua essa consciência escatológica, que George Steiner julga «[…] pode(r) ser exclusiva da consciência europeia.»[26], e à luz da qual deve ser decifrado o topos da solidão humana, tão explícito no corpus poético «3 - Solidão» e «4 - Pobre Contentamento». Todavia, a problemática filosófica que a obra de Torres levanta faz eco das correntes de pensamento de Nietzsche, Freud e Wittegenstein (vozes dissidentes do racionalismo moderno), as quais marcaram o Modernismo do início do Século XX, colocando em causa as lógicas de dominação sociais e políticas da Modernidade europeia, defendendo a capacidade e a liberdade do sujeito na construção criativa dos seus mundos exterior e interior, os quais passaram a ser percebidos como indeterminados e finitos, afinal, sem rigor causal, ou precisão absoluta. É esta visão contemporânea da ciência, a qual contrasta com o racionalismo moderno, que encontramos no poema «39 - Ilusões», e que no poema «57 - Equívoco», do livro em referência, interroga o equívoco da determinação filosófica moderna, com as correntes existencialistas de Kierkegaard, Heidegger e Sartre, entre outros. A descoberta da contingência e da irracionalidade da existência é, em Torres, o nada, ou falta de suporte, de um mundo que parecia, mas já não é, finito e explicável, mas sim incerto e, como tal, apoiado no nada.
A consciência do nada, em Torres, advém de um permanente sentimento de inquietação humana, motivado por um estado de vigília, que as barbáries produzidas pela radical visão racionalista vieram despertar. Fala-se do mesmo princípio subjacente ao racismo científico, que pretendeu legitimar o nacionalismo etnocêntrico, que “dourou” as narrativas do colonialismo, um discurso que Nelson Mandela, em Long Walk To Freedom, põe em causa, sem ódio racial. Por essa razão, Torres lhe dedica o poema «62 - Madiba», um oportuno tributo à vida de Madiba, que o próprio metaforizou com o ditado xhosa: «‘Ndiwelimilambo enamagama’ (‘I have crossed famous rivers’).»[27] Se Mandela recuperou o ditado xhosa da irreversibilidade do tempo, fixando o que vive na sua memória, bem como na nossa, seus leitores, Torres, no seu poema, também recupera Madiba para a intemporalidade, conferindo  uma dimensão infinita à matéria finita do homem. À luz do ditado xhosa, Mandela reordenou a sua existência, à medida que organizou a escrita memorial da sua vida, liderada pelo conhecido motivo verbal. O tema estruturador em causa é extrapolado dentro do plano de significação conotativo e reinventado, por analogia, com o seu sentido literal, que implica o esforço humano desenvolvido na luta que é a travessia de um rio, ou seja, a força e a coragem de quem ousa opor-se ao movimento transverso do seu caudal, ou, como diz Torres, no poema em menção, a «uma história doentia». A recordação poética de Nelson Mandela é retomada no último livro do poeta, Reserva de Memória (Livro VII). No fecho do poema «20 – Écrits français II: Souvenir»,  o sujeito poético salienta a grandeza do homem que, precisamente, não temeu opor‑se à hipocrisia política, insistindo em exercer o direito à palavra livre.
O livro em menção, Livro VII, configura‑se um conjunto extenso de 86 poemas, os quais dão continuidade à poética do tempo que, desta vez, é consubstanciada num corpus literário bilingue, em Língua Portuguesa e em Língua Francesa. A parte escrita em Português estabiliza as linhas temáticas glosadas nos livros anteriores, mantendo o tom de crítica à desorientação e ao mal‑estar de um tempo fin de siécle, agora global, em cujo prolongamento vivemos. Um tempo de incalculabilidade e de risco, ameaçado pelas ditaduras da ignorância, em que o Conhecimento e os seus agentes não comprometidos são perseguidos e humilhados, porque pensam, e duvidam dos ideólogos que se deixam manipular pelas autocracias ilimitadas do capital. Um tempo de decadência, sem lugar para a renovação de ideias, um tempo desumano, tornado brutal, pelos poderes vitalícios, no seu exercício viciante: sempre os mesmos, a repetir o óbvio, ícones caducos, alimentados pelas máquinas enganadoras do marketing social e político, no grande pântano dos media mundiais. Vale dizer que a marginalização a que foram votadas as Humanidades, a indiferença social, cultural e política a que foram relegados os estudiosos destas áreas, o diálogo quase nulo entre as Ciências e as Letras, são muito responsáveis pelo vazio identitário dos povos, impedidos de imaginar as suas narrativas de pertença, fazendo crescer, assim, um sentimento comum de deriva humana e de revolta, nesta viragem tecnocrata, de tendências a‑histórica e anti‑humanista. É dentro deste contexto, e parafraseando Torres no poema «22. Pobre Humanidade», em que «a memória vai mirrando como um cadáver na praia», é na verbalização poética deste clima de indiferença oficial que, no poema «3. Decadência», o leitor é envolvido na indignação do Eu poético, um gesto interveniente no mudo estoicismo nacional, ao nos conferir representação no acto ilocutório da pergunta que se transcreve: «Quando travaremos tais insultos?».  
No que se refere aos poemas escritos em francês, do livro sobre o qual se reflecte, estes são designados, em cada unidade, por «Écrits français», e são em número de oito. Dão início a esta parte dois poemas de Adèle Lambert, autora de uma entidade poética de vidro, criada com apenas nove anos de idade, mas cuja co‑autoria neste volume disse Torres consentir, pelo reconhecimento da qualidade própria da sua escrita. Temos, então, e de forma não sequente: «5. Écrits français I: Poème d’Adèle»; «8. Écrits français II: Des paroles»; «19. Écrits français III: Voyage dans la langue»; «20. Écrits français IV: Souvenir»; «50. Écrits français V: S’il n’y a plus rien»; «53. Écrits français VI: Science»; «54. Écrits français VII: La troisième mort»; «69. Écrits français VIII: Trouble».
Do mencionado aspecto inovador de Torres, no que se refere ao versátil poetar em duas línguas, vale reflectir sobre a evidência dual de um eu poético, ou voz falante, que no poema «19. Écrits français I: Voyage dans la langue» se enuncia «[…] le double de moi‑même», um barco à deriva entre dois meridianos, viajante ou velho pássaro migrador, são metáforas do desdobramento psíquico e artístico, susceptíveis de uma fértil problematização da enunciação poética em Torres, que não cabe aqui desenvolver.
A poética do tempo, em Torres, é o caminho do texto e do seu além, interstícios que falam do Homem, e sobre ele dimanam o sentido de fugacidade e fragilidade da sua existência. Tempo, em que, conforme o poema «61‑Anos que voam», do Livro VI, «os anos passam como nuvens apressadas», mas também tempo, em que, relembrando Hegel no poema 64, do mesmo livro, «Da morte nasce sempre a raiz de qualquer coisa». Coisa que fica, na cíclica Razão, que vai levando e juntando outras vozes, as quais, desde longe, vão resistindo à opressão, ao longo do mudo caminho para a Liberdade, que é sem atalhos. E, por essa razão, como diz Madiba e bem sabe Torres, persiste difícil e longo, num mundo, diria Marlow, “superiormente civilizado”, mas em que o Homem, como prova Conrad, continua, afinal, “superiormente indefeso”.   




[1] Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa - II, Lisboa, Biblioteca Breve, 1986, p.34.
[2] Leia-se Adelino Torres, «Para um Epitáfio», in Torres, Adelino (coord.), Força Nova: Colectânea de Poesia de Estudantes de Luanda, Luanda, Neográfica, 1961, pp. 25-28.  

[3] De Força Nova constam os cinco poemas de Torres: «Cavaleiro do sonho», «Pescador», «Para um epitáfio», «O Corcunda» e «O último poema». Cf. Adelino Torres (coord.), Força Nova: Colectânea de Poesia de Estudantes de Luanda, 1961, pp. 21-35.  
[4] Adelino Torres, «Retour à la Source», in Revue NRF-Nouvelle Revue Française, Paris: Gallimard, 15e Année (179): 916‑22, Nov. 1967. Texto on line na página «Trabalhos do autor»: www.adelinotorres.com
[5] Idem, Encontro-Revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, Brasil: Ano 22 (19): 2005. Desta revista literária constam três poemas, que foram reeditados no livro Uma fresta no tempo seguida de Ironias, intitulados: «Notícias do sul», «Intuição» e «Renovar destinos». Cf. Torres, 2008, pp.52-57. 
[6] Idem, Uma Fresta no Tempo Seguida de Ironias, Lisboa, Edições Colibri, 2008. 
[7] Idem, Histórias do Tempo Volátil, Lisboa, Edições Colibri, 2009.
[8] Idem, Cantos do Crepúsculo (Poesias – Livro III), Lisboa, Edições Colibri, 2010.
[9] Idem, Tempo Irreversível (Poesias – Livro IV), Lisboa, Edições Colibri, 2011.
[10] Idem, Memórias do Futuro e do Tempo (Poesias – Livro V), Lisboa, Edições Colibri, 2012.
[11] Idem, A Caminho do Sul (Poesias – Livro VI), Lisboa, Edições Colibri, 2013.
[12] Aproprio-me da expressão utilizada por Philippe Breton, Elogio da Palavra, trad. Nicolas  Nyimi Campanário, São Paulo, Edições Loyola, 2006.
[13] José Carlos Venâncio, «Lusofonia e Cânone Lusófono: Da Controvérsia dos Conceitos à Manifestação de Duas Escritas a Partir da Margem», in Cristóvão, Fernando (dir. e coord.), Ensaios Lusófonos, Coimbra, Almedina, 2012, p. 95.
[14] Maria Virgínia de Aguiar. «Luís Cordeiro, Pintor: Um Diabo no Paraíso». In Azevedo, Maria Helena de (ed.). Notícia, Luanda: Neográfica Lda., x, (512): 18-25, Set. 1969.
[15] Maria Virgínia de Aguiar. Idem, p.18.
[16] Maria Zambrano, Os Sonhos e o Tempo, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1994, pp. 17, 18.
[17] A expressão de Max Weber é retomada por Francesco Alberoni, em cuja acepção é aqui utilizada. Cf. Francesco Alberoni, Génese, trad. Maria da Graça Morais Sarmento, Venda Nova, Bertrand Editora, 1990.
[18] Cf. Roland Barthes, O Prazer do Texto, trad. Maria Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70, 1980, pp.12, 13.
[19] Ver as duas obras do mesmo nome, de Gilles Lipovetsky.
[20] George Steiner, A Ideia de Europa, trad. Maria de Fátima St. Aubyn, Lisboa, Gradiva, 2007.
[21] Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, trad. Isabel Gonçalves, Lisboa, Edições 70, s/d.
[22] Esclarecimento prestado por Torres, sobre Força Nova, via email, em 06/ 03/ 2013.
[23] VAVA, Poesia de Angola, Luanda, Nova Editorial Angolana, 1977, pp. 113-117.
[24] Excerto de conversa pessoal, no seu domicílio, com Maria Manuela Araújo, no ano de 2007.
[25] Boaventura de Sousa Santos, A Cor do Tempo Quando Foge, vol.2, Coimbra, Edições Almedina, 2012, p.119.
[26] Veja-se o quinto axioma que George Steiner aponta para definir a ideia de Europa. Cf. George Steiner, A Ideia de Europa, trad. de Maria de Fátima St. Aubyn, Lisboa, Gradiva, 2007, pp. 42-44.
[27] O texto em itálico é um ditado xhosa, citado e traduzido na autobiografia de Nelson Mandela. Cf. Nelson Mandela, Long Walk To Freedom, vol I, Great Britain, Abacus, 2002, p. 121.

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