Após mais de oito anos como detective
particular, ao lado de Hutte, patrão e amigo que decide gozar a reforma em
Nice, o narrador vai dar início a uma investigação muito particular: saber quem
é, donde veio, como se chama, qual foi o seu passado. «Não sou nada», lê-se no
intróito. Uma amnésia roubou-lhe a memória quando, com Denise, procurava fugir
à Segunda Guerra Mundial através da fronteira franco-suíça. Ambos enganados
pelos passadores, e já separados, o nosso herói vagueia pelo branco da neve até
retomar os antigos passos que façam luz sobre um optimismo crescente.
Da família e amigos a ódios que se esvaíram,
lenta é a perquisição, emaranhando-se as pistas, chocando-se nomes supostos e
acaso verdadeiros, num desvelar de situações que pedem grande atenção e
paciência ao leitor. Os seus interlocutores são figuras, de algum modo,
marginalizadas, mas sempre generosas. Todos cedem as fotografias que iluminam
um périplo e que o herói guarda num bolso interior, acalentando-as como a um
antigamente que se elabora na topografia de Paris, também esta já não de todo
intacta.
A propósito do seu Remise de Peine, L’Express
(5-II-1988) referia esta particular característica de Patrick Modiano (1945):
«Primeiro, os lugares. Porque há um Paris de Modiano. Não épico como em Balzac,
nem mundano como em Proust, mas obcecado pela lembrança, reduzido às dimensões
do inconsciente, submerso.» Outras obsessões que traz a adolescência – desde
edifícios, números de polícia e moradas precisas até às recorrentes garagens –
são confessadas por Modiano em entrevista a El País (Madrid) de 16-V-2009.
É curiosa esta presença de Balzac
(institucional) e Proust (sentimental), a que era mister acrescentar Céline – parisiense,
tal o herói, igualmente se distrai um pouco da cidade-luz, mas a cujas
periferias ou bairros perdidos sempre regressa. A relação que Modiano
estabelece com os seus escritores passa normalmente pelos cenários dos
respectivos livros, de que se torna familiar, e onde facilmente situa e
confunde personagens reais e de ficção.
Se se dá o caso de o universo lhe parecer
longínquo, como, em artigo de homenagem (Le Matin (Paris), 17-IX-1980),
reconhece ter sido o de Giono, aí, a aproximação acontece «graças à força e à
simplicidade do estilo», que são, do mesmo pé, características da sua obra.
As vagas reminiscências que emergem e se
coligam obrigam a uma forma alusiva de contar. Esta faz uso de textos
cristalizados, como moradas extraídas de anuários e listas telefónicas, ou das
investigações que provêm de um detective a seu cargo. Parte do texto ergue-se,
assim (idêntica estratégia na correspondência militar em Pantaleão e as
Visitadores, de Vargas Llosa), do nevoeiro ou de um «sonho que tentamos agarrar,
quando despertamos, para reconstruir o sonho inteiro» (p. 93). Deste modo pode
ser vista a situação do narrador, quando arranca em busca de uma identidade
(sujeita a origens e filiação), não isenta de culpa, como em Fleurs de Ruine
(1991).
De cada texto seu, e de como de Une Jeunesse
(1981) escreveu François Nourrissier (Le Figaro Magazine, 14-II-1981), Modiano
faz «um romance-murmúrio», onde «se risca tanto quanto se escreve», onde, se há
recuos, é para melhor apreender a fluidez dos instantes, onde se ensaia tocar a
respiração de várias solidões. Ou, como de Dimanches d’Août (1986) escreveu
Antoine Audouard (Le Figaro Magazine, 20-IX-1986), «O milagre é que esta dor
doce, esta suave habilidade [...], nunca cansam».
Se Na Rua das Lojas Escuras (porquê traduzir
[Lisboa, 1987] este sexto romance Na Rua..., se a personagem nunca se encontra
nessa rua, mas tão-só projecta conhecer-se enfim na Roma sonhada?) é uma busca
no labirinto da identidade, já, em Domingos de Agosto [Lisboa, 1988, donde
cito], passa-se um pouco dos mistérios quase sem solução para um enigma que nos
dá resposta. O antigo fotógrafo de arte transformou-se em garagista.
Depara-se-lhe, em Nice, Villecourt, vendedor ambulante que, até sete anos
antes, fora feliz com Sylvie e que esta abandonara pelo fotógrafo.
A humidade e mofo meridionais anunciam,
todavia, a vindicta das «águas lodosas do Marne», onde as personagens se tinham
encontrado. Os Neal, um casal-figura da duplicidade sempre convivendo em
Modiano, preparam-se para vingar o amigo desprezado... Um diamante riquíssimo
sobre Sylvie arrastará os fugitivos para a definitiva separação.
Como se vê, também aqui é mais uma história de
amor breve e sem amanhã. São, precisamente, os fugidios instantes desse Agosto
de há sete anos que suavizam a memória e encandeiam o texto. No tempo do
discurso, sabemos que estamos perante «silhuetas do passado», ou que, como diz
o narrador, «os fantasmas não morrem» (p. 32). O tom nostálgico escorre como a
chuva no Passeio dos Ingleses, nessa «cidade de fantasmas onde o tempo parou»
(p. 93), Nice. Temos duas histórias de enganos em que os narradores perdem as
amantes, mas em ambas existe a reconstrução através da fotografia ou, o que vem
dar ao mesmo, daquilo que fomos um dia: além, o narrador, ex-detective, evolui na
companhia de, e serve-se de, um detective; aqui, Jean, antigo fotógrafo,
compreende o logro e reconhece Neal com a colaboração do fotógrafo ambulante do
Passeio dos Ingleses. Como se dissesse: não se pode fugir ao nosso destino.
Nos dois livros, ainda, comparece a Roma
mítica, «a única cidade em que eu imaginava que poderíamos fixar-nos para o
resto da nossa vida, essa Roma que se adequava maravilhosamente a naturezas tão
insolentes como as nossas» (p. 92). Na ausência do lugar, o seu murmúrio.
[A escolha de Modiano surpreendeu,
naturalmente, a bem informada crítica portuguesa. O texto acima é adaptação do
que já escrevi no semanário Tempo, em 28 de Abril de… 1988.]
Fonte: Mensageiro de Bragança, edição 3495
Ernesto Rodrigues - 40 Anos de Vida Literária - PROGRAMA
Fonte: Mensageiro de Bragança, edição 3495
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