08 outubro 2014

Júlio Machado Vaz - Convite

Era uma vez um professor…, de Júlio Machado Vaz

Resumo: Em Era uma vez um professor…, o médico psiquiatra Júlio Machado Vaz reúne uma série de textos proferidos em diferentes conferências ao longo da sua carreira. Esta é uma leitura de extremo interesse, em que aborda assuntos curiosos da forma didáctica, científica mas descontraída, que caracteriza o seu discurso.

Júlio Machado Vaz debruça-se sobre pessoas e temas tão diversos como Mozart, José Sócrates e Álvaro Siza Vieira; o amor cortês, a arquitectura e o Serviço Nacional de Saúde. Porque, com
o Abel Salazar reflectiu, «um médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe».
 Autor:
Júlio Guilherme Ferreira Machado Vaz nasceu a 16 de Outubro de 1949, no Porto.
É médico psiquiatra. Professor auxiliar a título definitivo aposentado e ex-regente de Antropologia Médica no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Membro do Conselho Consultivo da Universidade Lusíada.
Membro do Conselho Consultivo da Fundação da Juventude e director técnico da Comunidade de Inserção Eng. Paulo Vallada, para adolescentes grávidas e mães com seus filhos. No mesmo contexto, preside a Direcção da Associação Acolher e Cuidar para a Cidadania, que passará a assegurar o funcionamento da referida comunidade.
Director clínico da Comunidade Terapêutica para recuperação de toxicodependentes de Adaúfe, em Braga. Membro da Comissão de Ensino da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e vice-presidente da mesma sociedade.
Livros publicados: O Sexo dos AnjosO Fio InvisívelDomingos, Sábados e Outros DiasMurosConversas no PapelEstilhaçosEstes Difíceis AmoresO Amor é…Aqui entre NósVinte Anos Depois.
Programas de rádio: «Sexo dos Anjos» e «A Bela e os Monstros». Nos últimos dez anos, é autor/apresentador de «O Amor é...», na Antena 1.
Programas de televisão: «Sexualidades» e «Serralves Fora de Horas». Actualmente, é comentador residente do Porto Canal.
 CARTA AOS MEUS NETOS
À GUISA DE PREFÁCIO
«Rapazes,
À primeira vista, tresanda a redundância dedicar-vos um livro que pontua a minha entrada na velhice oficial. Vocês são o futuro da tribo, os parceiros de almoços apressados entre aulas e partidas de ping-pongpreguiçosas em Cantelães, a terapêutica de choque se o sorriso ameaça de divórcio o coração. (O dos lábios não é problema, ora sublinha alegrias, ora disfarça tristezas, é multiusos; epidérmico. Mas o do coração é fundo. Se nos deixa, a força de viver, órfã e às escuras, hiberna sem Primavera garantida.) Logo, tudo o que escrevo ou digo vos pisca o olho, na esperança de um segundo de atenção, com sorte, do privilégio da vossa curiosidade.

E se o livro habitar a mão de um só leitor, talvez ele sussurre para os botões ser impossível escolher pior escrita para dedicar a quem inicia a aventura da adolescência. Com tanta esferográfica morta de fadiga na consciência, não poderia eu escolher prosa mais atraente para idades em que ainda me deliciava com Os Cinco de Enid Blyton? Argumento de granítica lógica em granítica cidade. E no entanto desprovido de lastro, não aspiro a leitura próxima, cabecitas dobradas ao peso da luz que do candeeiro demanda a página, com repouso imperceptível nos vossos ombros.
Passo a explicar. Há um quarto de século não havia consolas frenéticas, jogos interactivos, telemóveis abrigando tantas funções que vocês consideram desperdiçado o meu, leio o escândalo nas faces por apenas o utilizar para telefonemas ou SMS. Os computadores ensaiavam os primeiros passos, nédios e estranhos às nossas salas de estar, se algum iluminado dissesse facebook, perguntaríamos o que era um livro de caras. Assim, a televisão reinava. Como entre a ganapada não consegue hoje, mesmo com desenhos animados de rostos orientais e vozes dilacerantes, telenovelas para todos os gostos e reality shows que procuram descer mais um degrau em termos de mau gosto para subir o share. Que tem algo de miraculoso, afinal quase todos nós juramos não os ver...
A televisão reinava, mas alguns temas ainda lhe não habitavam a corte, o sexo era um deles. (Palavra que não minto!, mas aceito esses sobrolhos franzidos e desconfiados, hoje é o vendedor por excelência de todo o tipo de produtos, comprar é preciso, trautearia o Chico). Apesar de longo caminho ter sido desbravado por outros, alguns meus professores e amigos, quiseram o acaso e um programa de rádio – paradoxalmente chamado O Sexo... dos Anjos –, que fosse eu a protagonizar um programa sobre o tema na televisão. Embora, seis meses depois já tivesse sido relegado para o segundo canal em horário de filme de terror ou pornográfico, por influência dos que hesitavam em qual das duas categorias o decretar, o carimbo da opinião pública fez o seu trabalho na minha testa, só faltou à chamada um anúncio em néon – eu era o tripeiro que falava “daquilo.”
E fui! Desde o início da década de oitenta, nos anfiteatros do ICBAS, com alunos voluntários das mais diversas origens, a desoras, quase clandestinos, num caos em que se misturavam risos, dúvidas, algumas lágrimas. Anos felizes, esses. Mas reduzir-me ao estatuto de sexólogo do regime, depois a uma das figuras tutelares da geração mais nova, que para nosso orgulho continuou tarefa delicada e lenta, não me parece justo; fui outras coisas. Para falar com franqueza, não sei bem o quê. Professor, seguramente! Se à entrada de Céu ou Inferno me fosse perguntado ofício, não hesitaria um momento – professor. Antes e depois, a aposentação não diminuiu em nada o gosto por transmitir a outros a paixão desencadeada por acariciar a lombada de livro recém-chegado, saboreando-lhe já as entranhas. E no entanto...
Meses atrás, eu e o Tio Manel preguiçávamos no jardim de Vila Praia de Âncora que assistiu às brincadeiras do pai Guilherme e do tio João com os Simões, as famílias cresceram entrelaçadas ao longo de décadas, espero que vocês mantenham viva a tradição. A meio da conversa recordámos o prazer que nos tinha dado “actuar” juntos no Porto Canal. Se puderem, dêem uma vista de olhos à gravação, nenhum parágrafo lhe faria justiça. Nela vivem a cumplicidade de dois homens, a ternura que os une, a harmonia que permite aos discursos fluírem sem solavancos ou egos à compita, nos tempos que correm é obra rara e asseada.
O Tio Manel sorriu e deixou cair – “O Manelzinho diz que com a idade eu devia tornar-me divulgador científico.” Carinhosa provocação de filho maroto, o Tio Manel não se imagina fora do “seu” IPATIMUP, já desisti de lhe pedir para abrandar o ritmo infernal de conferências e cursos por esse mundo, que lhe retribui com enorme respeito, assim honrando o país em geral e a Universidade do Porto em particular. Eu sorri de volta, assunto encerrado. No momento seguinte ele já se precipitava Âncora abaixo, em busca do almoço domingueiro que nos reúne, enroscados na meiga asa da Tia Gu, Vazes e Simões em velocidade de cruzeiro.
Eu fiquei a pensar. Divulgar é um verbo que não lhe faz justiça, mas talvez se aplique a mim como uma luva, pois não me limito a espalhar palavras que me fascinam? E pertencem a outros, rapazes, nunca fui um pensador original, em dias bons visto à minha moda o discurso de quem o é, no conteúdo ou na forma, e apregoo o prazer que me deu aos quatro ventos; nada mais. Nos anfiteatros, mas não só, quando olho a estante, ombro a ombro com a minha lendária preguiça, surpreendo-me com o que foi habitando o papel ao longo de vinte anos. Bom ou mau, foi muito. E não só sobre “aquilo”…
Por isso este livro é para vocês. Na esperança de que me conheçam melhor, através de interesses e dúvidas escritos por mim e não apenas entregues às memórias generosas do Pai e do Tio.
Uma última palavra, antecipando curiosidade, que não ciúme. Pôr a Teresa na vossa companhia – pobre dela!... – é de elementar justiça e sentida ternura. O povo diz que de boas intenções está Inferno cheio. Bom, o 138 da Rua João de Barros também. Não fosse a Teresa e a sua implacável amizade, o livro não seria publicado, foi a ela que expus a principal motivação para cerzir os textos, ou seja, apresentar-vos outro Avô Júlio. Ela escutou com a habitual paciência e reagiu com a decantada rapidez – “vais fazê-lo já!”
E eu obedeci. Além de concordar, aprendi há muito tempo que não vale a pena discutir com as mulheres. Sobretudo as que amamos...
Quanto aos meus alunos, se encontrarem algum, perguntem-lhe. Ele diz-vos o porquê de tão grata dedicatória.

Dois beijos,
Avô Júlio.»

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