À memória de António Cabral e de Caldeira
Azevedo
O SONHO QUE NOS LEGARAM
Douro dos
montes em calvário
E dos
passos vertiginosos
ouve-me:
assim não
havemos de morrer.
Estenderemos
o sonho que nos legaram
os que
morreram antes de nós;
estenderemos
esse manto azul
e, um dia,
sabemos
que é
nossa a terra da promissão.
………………………………………………………………………António Cabral, in POEMAS DURIENSES
………………………………………………………………………António Cabral, in POEMAS DURIENSES
A NATUREZA FOI PARA O DOURO VERDADEIRA TERRA MATER. Dotou-o de virtudes, moldou-lhe
a beleza, excedeu-se em adornos, ensinou-lhe as manhas da sedução, encheu-lhe
as entranhas de tesouros, concedeu-lhe o xisto, por cortesia, dele fez terra
fértil, daimosa. Mimou-o, mas fê-lo robusto. Preparou-o para os contratempos da
vida. Toucou-o de flores e de frutos. Deu-lhe perigos, mas forneceu-lhe armas
de defesa. E exigiu-lhe, em contrapartida, que se mostrasse digno do seu
destino: maravilhar o mundo, embriagando todos os sentidos, produzir o que de
melhor é capaz um solo de eleição. Geia fez a sua parte. Guardou para o homem o
resto. E este soube interpretar com mestria e abnegação o papel que lhe foi
atribuído.
O HOMEM DO DOURO NÃO TEVE ESCOLA. Herdou a
sabedoria e aumentou-a. A experiência lhe serviu de mestra. Os erros foram a sua
pedagogia. Os sucessos, seus estímulos. Os insucessos, desafios. Humilde de
condição, dispensou louros. Das fraquezas fez forças. Do desânimo de um hoje, a
esperança de um amanhã. Não buscou protagonismo, nem sonhou com aplausos.
Apenas o revoltou a fome, o pouco pão.
DOURO. A PALAVRA É DOCE, EUFÓNICA.
Presta-se à homofonia – de ouro. E à homonímia. Douro é, também, uma forma do
verbo dourar. Douro o Douro. Douro de ouro.
NÃO DIGA QUE CONHECE BEM O DOURO, em toda a
sua variedade e especificidade, se o não visitou em todas as estações do ano.
Cada uma encerra os seus encantos, os seus segredos. Todas falam do ciclo do
trabalho da vinha e do vinho, da poda ao lagar. A cada uma compete preservar
tradições ancestrais que a modernidade vai pondo no rol das espécies em vias de
extinção. Sinta o frio das manhãs de geadas a barbear-lhe o rosto. Engula a
brisa adocicada de primaveras e verões luminosos. Em tempos de vindimas,
lembre-se do passado – das rogas, dos cardenhos, da exploração dos
trabalhadores, do peso dos cestos vindimos alombados por homens socalcos
abaixo, das lagaradas de pisa acompanhada ao som de ferrinhos e concertinas, a
esconjurarem sonos e cansaços.
PAISAGEM DO DOURO. Montes e rio. Rio e
margens. Barco rabelo em museu de ar livre, para turista ver. Foi-se a vela
quadrada, ficou o cavername, protegido pela espadela, qual espada pronta para
todos os combates. Barcos da civilização. Do bem-estar. Do prazer. Deslizando
em leito sem pontos assassinos, sem valeiras do tempo de Forrester e de D.
Antónia. Embarcações de encher o olho, a lembrar cruzeiros de Danúbios e Renos.
Quem neles viaja não leu a epopeia “Lusíadas sem Camões”. Assim chamou Jaime
Cortesão aos Hércules da vinha. O turista que saboreia o vinho fino ignora a
via-sacra que lhe subjaz. Não calcula quantos homens pereceram em cachões, em
obras de construção da via-férrea, de estradas, de socalcos. Quantos se ficaram
abafados em tonéis. Não identificam o cheiro a suor, nunca viram mãos
calejadas. Desconhecem a geometria do engaço, da foice, da enxada. A forma do
pulverizador. O cheiro do sulfato. Nunca viram erguer uma videira “como quem
faz a trança à filha”, como escreveu Torga.
O DOURO NO PLURAL. De vinhedos, olivais,
amendoais, laranjais. De miradouros, altares de culto, alcandorados nos
cocurutos das serras. Recolhimento/deslumbramento. Alvas ermidas rebocadas, de
santos protectores recolhidos, enclausurados, à espera do dia da festa para
poderem, também eles, gozar o espectáculo com que mortais se comovem. Douro
policromático. Vem primeiro o amarelo, com as mimosas, de floração efémera,
feita de bolinhas douradas a fazer lembrar contas de Viana. Março é mês de
rivalidade entre árvores fruteiras. A amendoeira vence a corrida, chegando à
frente do pelotão à meta da beleza branco-rosa. Seguem-na, ao desafio, as
outras espécies que dão frescura e sabor a bocas gulosas. Tons idênticos.
Vejam-se as amendoeiras em flor, a neve da Terra Quente. Promessas de vida. Da
flor ao fruto, da cor à cor, da cor ao sabor, ao cheiro, ao tacto.
“MONTES PINTADOS” DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIA. Na Primavera os montes
engalanam-se de roxo, de branco, de amarelo. Giestas, urzes e estevas. Poucas
torgas. Rosmaninho. Combinação harmónica de tonalidades. O Outono desafia a
paleta do pintor: cores de topázio, de rubi, de ametista. Preciosas como
pedras. Sem esquecer o azul do céu, o esverdeado do rio, o fugidio acinzentado
das garças. O verde é omnipresente e persistente, graças à abundância das
oliveiras que debruam nacos de vinha como
picots naperons de linho. E os ciprestes, ícones de quintas, empertigados
guardas sem direito a rendição. E sem cheiro a morte.
António Manuel Caldeira Azevedo escreveu em
Ode ao Douro, poucos meses antes da
partida:
As
paisagens são palimpsestos que o espírito das águas e dos ventos não descansa
de sonhar. Leonardo da Natureza, a erosão forma o informe, o vegetal, palete de
guaches, pinta, o homem, expulso, jardina. O Douro baixo-relevo talhado pela
glosa da água e recital do vento, e retábulo de aguarelas de belo natural e
humano: Garganta de Miranda, estreito que a força do destino das águas rasgou;
Congida, virgindade que gigantes telúricos guardam, beijada pelas garças e
coroada pela auréola que o voo circular dos grifos desenha bem para lá do sobreiral
e das fragas.
In Ode ao Douro
Está feita a minha insignificante homenagem
a dois poetas do Douro com quem convivi e que me deixaram saudades. Não conheci
Torga, mas escolhi-o para rematar este meu breve olhar deslumbrado:
Nas
margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe
e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em
íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os
manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e
descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham.
Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do
mundo.
in
PORTUGAL
M. Hercília Agarez, Fevereiro de 2013
Nota: texto publicado no número 19 do Boletim Cultural da
Escola Camilo Castelo Branco.
Sem comentários:
Enviar um comentário