02 março 2011

ANGOLA, UM AMOR IMPOSSÍVEL

Texto de apresentação do livro de António Passos Coelho, escrito e proferido por Hercília Agarez, membro do Grémio Literário de Vila Real e da Direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes, no  no dia 25 de Fevereiro. Inclui uma carta inédita de Araújo Correia.




      “Entre os médicos, muitos são-no pelo título, poucos pela condição” Hipócrates

    “Um médico não é bom médico se ele próprio não foi doente” Provérbio árabe

    Há livros cuja tipologia é anunciada na capa (romance, contos, poesia, teatro, diário, etc.), outros
em que ela é facilmente dedutível ( Diário de Paris, de Marcelo Duarte Matias, Memórias de uma menina bem comportada, de Simone de Beauvoir, Confissões, de Santo Agostinho, Camilo Broca, de Mário Claúdio, Bichos, de Miguel Torga) , e ainda outros que deixam em aberto o teor do seu conteúdo e a sua filiação nesta ou naquela categoria literária. É o caso do livro que hoje aqui nos reúne em volta do seu autor e de cuja apresentação, tarefa sempre delicada, fui incumbida com uma confiança que me desvanece.
    Se consultarmos a biobibliografia de A. Passos Coelho, verificamos que a escrita literária exerce sobre ele, há muito, uma atracção mais substancialmente materializada quando os seus múltiplos afazeres médicos lhe concedem, como espécie de prémio de bom comportamento, momentos de disponibilidade espiritual exigível pelo acto criativo. Escreveu Vergílio Ferreira em Pensar: “A Arte nasce de uma solidão e dirige-se a outra solidão”. É ele também o autor de uma reflexão (é de reflexões que trata a obra) que nos parece ouvir da boca do nosso escritor “(…) Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos, pessoas que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser.”
    Passos Coelho escreve para ser e para dar testemunho do que foi. Humanamente, profissionalmente, civicamente, eticamente. Ao escrever a sua história de vida está a perpetuá-la, tal como faz com histórias de outras vidas. Ao falar de si, estabelece uma constante ligação entre o eu e os outros. Um e outros interagem, entre eles se estabelece uma cumplicidade e um elevado grau de dependência mútua.
    Tratando-se, como é o caso, de uma narrativa de primeira pessoa, a centralidade do eu implica a secundariedade dos outros, cujo relevo na acção depende das suas relações afectivas e/ou profissionais com esse eu. Surgem assim intrigas secundárias ou meros episódios que se desenrolam, em alternância com a intriga principal, ao longo dos quatro anos de permanência do médico em Angola e de que se destaca, pela sua consistência romanesca, a história de amor do casal Baio, um branco amigo do narrador, e uma negra, Nazaré. Umas e outros retardam o desenrolar da acção e enriquecem-na enquanto histórias marginais, além de consubstanciarem realidades de vária ordem, espécie de peças de um gigantesco puzzle que é a vida em África nos primeiros anos da década de setenta.
    É muito rico em experiências/vivências humanas e profissionais o percurso de A.Passos Coelho. Engrossa ele o rol de escritores-médicos de que destacaremos Garcia de Orta, Júlio Dinis, Fialho de Almeida, Fernando Namora, Miguel Torga, João de Araújo Correia, António Lobo Antunes. Se a vida precede a literatura e é dela inspiração, quem, na sua caminhada, armazena mais material susceptível de se transformar em pontos de partida para uma efabulação verosímil?  
    Sem pretendermos catalogar este livro, sempre adiantamos pertencer ele ao que vulgarmente se chama literatura intimista (autobiografias, diários, memórias, cartas). São os seus autores pessoas cujas vivências se revestem de singularidade, riqueza, complexidade, interesse documental, capazes de lhes garantirem perenidade.
    A escrita de quem se desnuda perante leitores incógnitos, devassando a sua intimidade sem pudores nem constrangimentos, assume um cariz introspectivo e confessional em que os poetas são férteis. Sendo as experiências de vida e os testemunhos corporizados em textos em prosa, não dispensam o intuito informativo, por mais que a emoção, geradora de subjectividade, arraste o narrador para situações passíveis de serem interpretadas como excessos de auto-estima. Nas suas Confessions Jean Jacques Rousseau vinca, assim, a sua individualidade: “ Não sou feito como nenhum dos que conheço. Ouso acreditar não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho mais, pelo menos sou outro.”
    Ao transpor para a obra literária a sua interioridade, o autor revela, pois, e usando palavras do poeta Pedro Támen, o “inevitável egocentrismo dos artistas e dos escritores”. E, como diz Clara Rocha, “a narração autobiográfica pode ser concebida como a variante literária do mito de Narciso e a representação do amor-próprio encarnado no narrador/personagem.”
    Esta evidência é contornada pelo autor de Angola, Amor Impossível ao tentar, através do comum artifício de se esconder por detrás de um narrador outro, declinar a sua identidade e o seu protagonismo. A personagem central é, para o efeito pretendido, um médico tisiologista, de seu nome Remigio Ladeira, enviado para Angola, antes do 25 de Abril, com uma determinada missão, cumprida num determinado lapso temporal, cujos cenários são as terras por onde ele circula profissionalmente, habitadas por gentes várias, a maioria (se não a totalidade) delas com existência real, envolvidas em situações dramáticas, protagonistas de intrigas secundárias ou de simples episódios com pouco peso no economia da obra, mas todas elas representativas de evidências que o narrador ambicioso não deixa escapar pelo enriquecimento temático de que se revestem.
    (leitura do texto da página 32-33 – origem do nome Remígio)
    Todos os que aqui estamos conhecemos suficientemente o escritor e o seu percurso vivencial é factualmente verificável. Daí ser-nos difícil ignorar a sua identidade desvendada através de referências múltiplas à sua vida familiar e afectiva, à sua especialização clínica, aos seus relacionamentos profissionais, políticos e sociais, à sua terra natal.
    Ao narrador/protagonista incumbiu o autor a tarefa assumida por Garrett ao escrever Viagens na Minha Terra: “de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica.”
    Assim é. Em 1970 o Dr. Ladeira parte para Angola acompanhado dos seus receios e dos seus anseios, das suas saudades da família e do trabalho, para levar a cabo uma missão para que estava tão habilitado que a sua escolha não levantava controvérsia – instalar em Angola, a convite do ministro do Ultramar, um sanatório para doentes pulmonares. E é ao serviço desta causa que percorre espaços angolanos (exteriores e interiores, centrais e periféricos, poisos de negros e de brancos, de ricos e de pobres) em clima de guerra. É numa luta sem tréguas contra hábitos enraizados, mentalidades obtusas, carências de toda a ordem, que o especialista conhece uma pluralidade de gentes com quem estabelece relacionamentos profissionais, sociais e afectivos. Gentes que entram no seu quotidiano desterrado ora para o ampararem espiritualmente, ora para porem à prova a sua capacidade organizativa e a sua resistência psíquica. Para umas é uma figura respeitável e conceituada a exigir tratamento deferente, para outras um homem sábio e influente a quem se pede ajuda e a quem se dá, sem contrapartidas, um lugar no aconchego de família, para outras um rival a abater, para a maioria uma espécie de Messias de quem se esperam todas as salvações.
    De referir a multiplicidade de espaços reais marcados pelos passos seguros do clínico: os dispensários, a prisão do Capolo, o Isolamento, a casa do Governador, a Escola onde leccionou Higiene, as casas frequentadas, a sua própria casa, etc.
    Entre o momento da escrita do livro e os factos que lhe servem de suporte, decorrem cerca de trinta anos passados a uma grande distância geográfica. Este distanciamento espácio-temporal obriga o autor a rememorá-los com a fidelidade possível, embora ao rigor não seja obrigado porque o seu papel é, por vocação, o de ficcionista. Camilo dizia, quando punham em causa o ineditismo das suas novelas: “Eu não tenho imaginação, tenho memória”. Passos Coelho revela a segunda na capacidade de fixar acontecimentos vividos, de descrever com visualismo espaços físicos e figuras humanas, e a primeira na criação de diálogos abundantes que, além de conferirem verosimilhança à acção, lhe conferem uma vivacidade capaz de impedir uma eventual monotonia a que o registo narrativo está sujeito.
    O atrás referido distanciamento tem outra particularidade que cabe aqui realçar. Embora o autor não seja um historiador, obrigado a uma isenção e a uma objectividade de que o seu estatuto não pode afastar-se sob pena de falsear dados históricos destinados à uma posteridade de que são património cultural, o que ele faz, através do seu eco, ao registar todos os pormenores materiais e imateriais de uma Angola pré e pós-colonial, acaba por ser também história. Ousamos defender a ideia de que, a partir desta publicação, ficou ela mais rica quanto a um período obscuro da existência de um país cuja investigação urge continuar a desenvolver enquanto vivem os que combateram ou os que, de alguma forma, testemunharam os acontecimentos vividos nos diversos palcos de guerra.
    Quem esteve em África (mais particularmente em Angola) no tempo referido, poderá, é nossa convicção, confirmar as informações transmitidas: sobre o urbanismo, as etnias, os movimentos de libertação e as suas ideologias, as condições sociais, económicas e culturais, o racismo, a corrupção, o tráfico de diamantes, a gastronomia, as condições climatéricas, as estradas, os estabelecimentos hoteleiros, escolares, prisionais, hospitalares e outros.
    O narrador está, perante a matéria que virá a constituir o corpus textual da obra, numa posição privilegiada. Como médico é-lhe dado observar um sem número de situações vividas por colonizadores e colonizados, contactar com estruturas dirigentes, com quadros de medicina e de enfermagem, com doentes pneumológicos, incluindo os detidos na prisão, e com eles estabelecer laços de familiaridade facilitadores de confidências e de desabafos por ele aproveitados enquanto vivências a ter em conta num projecto de reconstituição histórica.
    O discurso é organizado numa descontinuidade temporal, uma vez que, a propósito deste ou daquele episódio, o narrador, através de frequentes narrativas retrospectivas, recua a fases da sua vida (infância, adolescência e idade adulta), o que confirma e intensifica a referida centralidade do eu.
    Se o tema central do livro agora editado (ousamos chamar-lhe o Caramulo africano) é a tal ruptura de um amor inviabilizado pela reviravolta operada na política portuguesa depois da revolução de Abril e protagonizado por um médico e uma cidade por que se apaixona, Silva Porto (ou Kuito), pensamos não ser descabido atribuir ao título uma certa ambiguidade. Pois não é também impossível aquele amor platónico que aproxima, traiçoeira e irresistivelmente, um homem por detrás de uma bata branca de uma mulher enfermeira escondida debaixo de um hábito que a não deixa esquecer o castrador compromisso com Cristo?
   Ficção ou realidade, garante esta intriga ao leitor um interesse acrescido. Pelo suspense que nele provoca, pela oportunidade de se proceder a exercícios de análise introspectiva, pela própria problemática dos conflitos gerados entre um corpo livre e um espírito comprometido (a provocar em ambos constrangimentos e arrebatamentos detectáveis nos diálogos que travam – curtos, incisivos, nervosos. (leitura – p.154-155)
    Outros temas enriquecem o conteúdo do livro, como por exemplo o adultério cometido por médicos em congressos, o assédio sexual no feminino vivido entre enfermeiras, a infidelidade feminina ligada à guerra a fazer lembrar as palavras do Velho do Restelo e o Auto da Índia de Gil Vicente, a obediência aos votos religiosos, o abandono e a adopção de crianças negras, os problemas resultantes de casamentos de portugueses com africanas, as referências à terra natal do autor, as circunstâncias dramáticas em que decorreu o processo de descolonização, o ambiente vivido em Lisboa durante o PREC, as inspecções à antiga.
    Se quisermos encontrar uma palavra-chave para esta narrativa, optamos por aquela de que os portugueses tanto se orgulham pela sua carga semântica e pelo seu carácter intraduzível – saudade. É, sem dúvida, esse sentimento que domina o escritor ao despedir-se definitivamente de Angola e que se encontra expresso no seguinte excerto: (p. 291)
     Voltando ao autor, registemos anteriores publicações de carácter memoralista: Gente da Minha Terra, contos, 1960, Material Humano, poesia, 1997, Caramulo, romance, 2006, Eu e a minha Vila, memórias, 2008. E, a avaliar pela regularidade da sua produção nos últimos anos, presumimos estar ocupada a sua forja de escrita…
    Apresentar um livro não é proceder à sua análise, antes levantar alguns véus que permitam desnudá-lo um pouco com a intenção de ajudar os presentes a decidirem se vale ou não a pena adquiri-lo. Pensamos que as razões aduzidas são suficientes para avaliar o seu interesse. Mas, mesmo assim sendo, somos levados a acrescentar uma a que a nossa formação académica não pode deixar de ser sensível.
    Numa época em que é cada vez mais descurado o cuidado a ter com a língua portuguesa, a que Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa chamou pátria, em que a comunicação social falada e escrita, esquecida das suas responsabilidades, nos mimoseia diariamente com atentados linguísticos a que palmatórias de tempos idos chamariam um figo, em que os clichés e os neologismos de formação duvidosa regurgitam de bocas pretensiosas, em que a maioria dos portugueses anda às cutrenas (cutrainas) com o famigerado acordo ortográfico, ler umas centenas de páginas escritas de forma escorreita, limpa, honesta, despretensiosa, sem incorrecções gramaticais, usando criteriosamente os registos adequados, recusando o recurso ao ornamento de uma linguagem afectada e/ou hermética, é um prazer e um enriquecimento.
   A este propósito apetece-nos ler uma carta dirigida pelo médico-escritor Camilo de Araújo Correia ao seu colega que também acumula as duas vocações. É um dos muitos fac-símiles com que o Grémio Literário premeia a assiduidade dos frequentadores das diversificadas actividades culturais que promove.
       
    Terminamos fazendo votos de que os leitores estejam à altura da obra e que não aconteça o previsto por Vergílio Ferreira em entrada da obra atrás referida: “Trabalhar um livro até à minúcia de uma palavra. E depois um leitor engolir tudo à pressa para saber ‘de que trata’. Vale a pena requintar um vinho para se beber como o carrascão?”


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