02 março 2016

BENTO DA CRUZ por A.M. Pires Cabral


Bento da Cruz ainda viveu o suficiente para ver comemorados, em 2013, os seus cinquenta anos de vida literária. E que vida literária! Iniciou-se em 1963, com o romance  Planalto em Chamas, e prosseguiu ao longo de cinco décadas, com uma produção impressionante, que compreende nada menos de oito romances, uma novela, três livros de contos, dois livros de crónicas e cinco livros de ensaios e afins, além de actividade jornalística vária. (É certo que há também um livrinho de poesia, de 1959, mas é uma ‘carta fora do baralho’, como se diz hoje, de menos valor face ao resto da produção e, de qualquer modo, de um género literário que Bento da Cruz logo abandonaria, não o reconhecendo como a sua forma natural de expressão artística.)

            Recordo-me de ter adquirido em Coimbra, onde estudava em 1963, o romance de estreia, Planalto em chamas, que li com avidez porque me levava a terras trasmontanas — no caso o Barroso, cenário que Bento da Cruz nunca mais abandonaria. Li-o — e confesso: foi amor à primeira vista por uma obra tão exemplarmente talhada, em carne e sangue, na realidade humana de Barroso.

            De Planalto em chamas para cá, publicou Bento da Cruz mais dezoito títulos: onze de ficção, dois de crónicas e cinco de ensaio (histórico, biográfico, etnográfico, sobretudo). Algumas dessas obras são verdadeiras obras-primas, como O lobo guerrilheiro, A loba e a muito recente Fárria.

            Em matéria de narrativa (romance, novela, conto — no fundo a vocação maior de Bento da Cruz), no panorama literário trasmontano, só Camilo Castelo Branco, Guedes de Amorim, Domingos Monteiro, João de Araújo Correia e António Modesto Navarro poderão responder com uma obra ficcional tão volumosa.

            Mas números são números ― dados puramente quantitativos, que têm a importância que têm. Pode-se escrever imenso e ‘não dar duas para a caixa’, como diz o nosso povo. Dá-se porém o caso de que a qualidade da escrita de Bento da Cruz corre parelhas com a quantidade. Aliás, os prémios literários obtidos, de expressão nacional e também galega, confirmam isso mesmo. Para além de um notável cronista, atento e confiável, da vida barrosã, Bento da Cruz é um escritor de primeira água, um poderoso criador de histórias, personagens, ambientes e situações. A esse respeito, lembremos uma feliz síntese da crítica Fátima Maldonado:

«A capacidade ficcional de Bento da Cruz é assombrosa, lembra às vezes a de Garcia Márquez.»

Apetece dizer: e lembra a do próprio Camilo que Bento da Cruz tanto admirou e estudou. Lembremos que Camilo dizia que não tinha imaginação, mas apenas memória — modo de dizer que não criava as suas histórias ab nihilo, mas apenas recordava lances testemunhados ao longo da sua vida aventurosa. De Bento da Cruz se pode dizer outro tanto: há na sua escrita uma tal verdade e autenticidade que só pode ser fruto da sua experiência de vida nas serranias natais de Barroso. Até aos 15 anos, participou  na labuta agrária da família, foi à lenha, jogou a rebindaima, guardou vacas, entusiasmou-se quando o boi de Peireses ‘podeu’ nas chegas, conheceu contrabandistas e outros figurões, padres devassos, gente da fárria, mendigos que dormiam noites gélidas de Inverno na quentura dos fornos do povo. De tudo isso se fez o lastro da sua ficção. Esta mesma experiência de vida é o motivo recorrente das suas crónicas tão amenas, tão verdadeiras.

            Impressiona igualmente em Bento da Cruz o ágil e sábio manejo da língua portuguesa, quer no registo clássico, quer no registo regional, no que toca à sintaxe como no que toca ao léxico. E também aqui é tentador o paralelo com Camilo, e também com Aquilino Ribeiro, esse outro gigante da literatura portuguesa baseada na ruralidade.

            Tudo isso é de algum modo confirmado pelo facto de a Editorial Notícias, ter aberto no seu catálogo um espaço exclusivo chamado ‘Obras de Bento da Cruz’. Não são muitos os escritores que se podem gloriar de uma tal distinção.

            Gostaria de insistir neste ponto: Bento da Cruz é um grande e relevante vulto das letras, não só trasmontanas, como nacionais, que pede meças a qualquer outro, incluindo alguns que têm por trás deles máquinas editoriais poderosas a promovê-los, às vezes muito para além dos seus reais méritos.

E gostaria de deixar isso bem claro em Montalegre, capital do mundo rural a que Bento da Cruz pertence, mundo em que se fez gente, mundo que lhe deu a sina de escritor, mundo que foi sempre uma das grandes paixões confessas da sua vida, mundo que ele celebrou como ninguém nos seus livros. 


Conheci Bento da Cruz aí por 1977 ou 78, em Vila Real. Foi-me então apresentado por um amigo comum, o poeta António Cabral. Mas uma verdadeira relação de amizade e camaradagem só se estabeleceria mais tarde, nos anos 80, no âmbito das Jornadas Camilianas de saudosa memória, em que ele participou por várias vezes como camiliano convicto e informado que era.

Vivendo longe um do  outro, escrevíamo-nos, não propriamente com frequência, mas com a regularidade bastante para irmos cultivando a nossa amizade. A partir de certa altura, as cartas (e mais tarde os e-mails) começavam não por ‘Caro Bento da Cruz’ ou ‘Caro Pires Cabral’, mas, respectivamente, por ‘Caro Marinheiro’ e ‘Caro Ceboleiro’. As razões deste tratamento, que traduz já uma fraternal cumplicidade, são conhecidas. Dele, lera eu em mais de uma obra sua que ‘Marinheiro’ era a alcunha (perfeitamente assumida) da família. De mim, sabia ele que nasci na aldeia de Chacim, Macedo de Cavaleiros, a cujos naturais, segundo o erudito Abade de Baçal e a voz corrente entre as gentes daqueles lados, cabe o apodo de ‘Ceboleiros’ — referência, sem dúvida, à antiga e grande Feira das Cebolas que ali se realiza a cada 10 de Setembro. 

Tive o grande gosto de apresentar livros seus e o gosto ainda maior de ver livros meus apresentados por ele. Oferecíamo-nos livros com dedicatórias em termos de grande afecto. Havia entre nós, além da tal cumplicidade, um sincero apreço recíproco.

Fazem-me falta as cartas de Bento da Cruz. Fazem-me falta a sabedoria serena, o sentido de humor, a mestria literária de Bento da Cruz. E mais falta farão eles, acredito, às terras de Barroso que o viram nascer e que tiveram nele um cronista de primeira água. Cronista, disse eu. Não que seja a crónica a sua forma natural de expressão (embora seja também um consumado mestre no género: vejam-se os saborosos apontamentos dos Prolegómenos). Mas porque os seus romances valem por uma fotografia de corpo inteiro de Barroso, suas gentes, sua cultura, sua história, sua paisagem, sua fauna e flora, seu clima agreste.

É que Bento da Cruz, mesmo vivendo em diáspora, nunca despiu a pele de barrosão. De Barroso recebeu tudo, e, em paga, a Barroso tudo deu. Deu a sua arte, o seu amor, a sua gratidão de  filho. E deu também, na hora extrema, o seu corpo — que repousa em Peirezes desde 27 de Agosto de 2015. Onde melhor?

 
O Grémio Literário Vila-Realense teve nele um grande amigo e um colaborador sempre disponível. Mesmo quando já visivelmente fragilizado pela idade, respondeu sempre às chamadas que lhe foram feitas (que ele — disse-me um dia — graciosamente tomava não como pedidos, mas como ordens) e desincumbiu-se sempre de forma primorosa das tarefas que lhe propusemos.
Amigos destes estimam-se enquanto são vivos. Assim o fizemos. E, quando partem, guardam-se na memória com o máximo carinho de que sejamos capazes. Assim o faremos

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