No lançamento de A Casa de
Bragança e Do Movimento Operário e
Outras Viagens, na Livraria Ferin, em 27 de Novembro
Agradeço a presença de todos,
desde jovens universitários a colegas deste ofício de trevas, que é a
literatura, em que buscamos iluminar alguns caminhos; desde familiares a
amigos, alguns de longa data, outros que vim fazendo na minha actividade crítica
e editorial, no associativismo regional, na Academia de Letras de
Trás-os-Montes, no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da
Universidade de Lisboa. Permito-me salientar, por razões de idade e pelo que
representa de sacrifício, os nomes de Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa e João
Rui de Sousa.
Quis a Âncora Editora
arriscar uma dupla neste dificultoso torneio do papel impresso, e logo, também,
com poesia, integrando-me em colecção dirigida por Rogério Rodrigues: o
provento será escasso, não a dívida com que fico para com Inês Figueiras e
Sofia Ferreira de Lima. Já no romance, curou da edição Virgínia Caldeira, que
conheço desde os idos de 80, quando ela trocava a Dom Quixote ‒ onde eu me
estreava no romance, com A Serpente de
Bronze (1989) ‒ pela Editorial Notícias, que editaria o meu segundo
romance, Torre de Dona Chama (1994). Mais
constante interlocutor era, todavia, António Baptista Lopes, que, já na Âncora,
aceitou inesperada Antologia da Poesia
Húngara (2002), uma das 20 espécies que dessa língua do diabo traduzi. Os nossos
almoços, viagens, telefonemas e encontros dariam volume rico de impressões e
boa disposição, na companhia de Teresa Martins Marques e Amadeu Ferreira.
Depois de, há dois anos, ter
lançado o terceiro romance, O Romance do
Gramático, na Livraria Bertrand, sabe-me bem descer à segunda mais antiga
livraria nacional – inicialmente, Librairie Belge-Française
−, fundada em 1840, e secundada pelo Cabinet de Lecture de Mlle Férin, na Rua
do Carmo, família que se estendia à encadernação e à moda. Com efeito, O Mundo Elegante / Periodico Semanal, de Modas, Litteratura, Theatros,
Bellas-Artes, dirigido por Camilo Castelo Branco no Porto, em 1858, propunha extratextos
com toilettes de baile e passeio
segundo as avisadas «Mmes Ferins». E ocorre-me ter antologiado, em Crónica Jornalística. Século XIX (2004),
texto de Fialho de Almeida n’O Repórter, de Oliveira Martins, em
2-I-1888, intitulado “A Boa-Hora Cómica”, donde cito: «Subo a Rua Nova do Almada um tanto aborrecido – acabo de pagar
uma enorme conta no livreiro e de ser apresentado ao orador que eu mais
detesto, depois do cornetim. O dia é pardo, nuvens no alto, o vento a erguer da
rua redemoinhos dum pó corrosivo à pele; e com um milhão de diabos!, não tenho
hoje visto senão raparigas barbudas nos asfaltos! // Estas
picuinhas todas irritam-me; e, como o Ferin não tem novidades, enfio pela
espécie de saguão estreito, que a Câmara Municipal convencionou chamar o Largo
da Boa-Hora.» Não é um dia fialhiano; o tribunal desertou, mas temos entre nós dignos
magistrados; felizmente, a Ferin está cheia de novidades; e, se alguma barbuda
existe, só se for em ministério nas proximidades. Grato, pois, aos editores e a
esta velha casa.
Comecei
a abandonar a crítica e o ensaísmo, a que dediquei demasiada vida. Editei oito
títulos de ensaio e crítica; sou responsável por 35 volumes de autores como o
Padre António Vieira, Herculano, António Pedro Lopes de Mendonça e o primeiro
jornal socialista, vários Camilos, As
Farpas completas de Ramalho, Júlio Dinis, Eça, os jornalistas Alves Correia
e Raul Rêgo, Augusto Moreno poeta, José Marmelo e Silva, António José Saraiva.
Pediram mais tempo a actualização do Dicionário
de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho, e as 1 064 páginas do clássico
de um grande jurisconsulto, desembargador e procurador da Coroa, Tomé Pinheiro
da Veiga e sua Fastigínia (1605), com
que sonhei durante 23 anos. Se juntar capítulos em obras colectivas, actas,
prefácios, revistas de circulação nacional e internacional, subo às 160
espécies, que é um terço dos artigos desde 1971. Desconto a cronística; não
contabilizo o profissional do jornalismo que também fui. Ou seja: a necessidade
e a Universidade desviaram-me… de mim. Silenciei sete peças de teatro; há
contos novos, após A Flor e a Morte,
de 1983; e, à atenção dos editores, oito romances à espera. O duplo lançamento
de hoje significa viragem e reencontro comigo. Falarei, pois, destes frutos.
Com Do Movimento Operário e Outras Viagens, sexto livro de versos, celebro
40 anos de vida literária. Estreei-me em 1973, andava no então 6.º ano do
liceu, com um volume impresso nas oficinas franciscanas de Montariol, em Braga.
Era chefe das máquinas frei Perdigão, que, em noite diluviana do mês de Maria,
acolheu o noviço das letras, me banqueteou em mesa austera, levou aos granéis
de Inconvencional (como se
intitulava) e ofereceu generosa cela. Revimo-nos 33 anos depois. Eu estava na
Feira do Livro e contava a Vergílio Alberto Vieira essa primeira ida a Braga,
quando a Teresa impôs subida. Boleados, dirigi-me à portaria: «Frei Perdigão
ainda é vivo?» Eis uma frase camiliana. Camiliano é o início do romance: «Eu
tinha oito anos e nada sabia de mim.» Vejam o início de Mistérios de Lisboa: «Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia
quem era.» Do frade eu guardava memória de ser de muitos dias. E o
recepcionista, espantado: «Sim. Está além a conversar com umas pessoas.» A sala
era obscura; eu estava em vésperas de um descolamento de retina. Vislumbrei um
ainda poderoso frade, aos 69 anos, que, encerrada a gráfica, explorava o húmus
do convento em ervas e medicinas do corpo. «Frei Perdigão?» «Sim. Quem me
procura?» «Sou Ernesto Rodrigues.» «Não é de Bragança, pois não?» Ele não
aceitava que aquele cinquentão substituísse retrato antigo, ousado como o
menino do poema oitavo d’O Guardador de Rebanhos. «Sim, sou.» «Não
me diga!» E desatou no elogio da obra e criança que, fora de horas, batera à
porta do silêncio… Vivi cinco anos dentro das paredes de dois seminários, mas
tive naquele frade o único abraço caloroso de um ministro do Céu. Não é pouco,
se isso deram uns versos mal-educados, com palavras feias manchando os
caracteres da tipografia divina.
Sou escritor desde que me
conheço; já enquanto leitor, que era antes dos seis anos, quando entrei na
escola primária de Torre de Dona Chama. Do lado da minha Mãe, havia a nobreza
das letras, que deu historiadores, sociólogos, políticos, filósofos e
jornalistas, mas também, nas artes, um arquitecto e um pintor.
Contra a solidão de leitor,
já escrevedor voraz, meti-me, aos 12 anos, a criar jornais de parede, lá onde
pairava o nome de ex-colega, Afonso Praça. Em letra impressa desde os 14, fui
encontrar, no semanário diocesano Mensageiro
de Bragança (a par de outros, alguns de Lisboa, como a revista Eva, Diário
Popular, A Capital), o reverso de
mim associável à literatura ‒ daí, a tese de doutoramento conjugar literatura e
jornalismo ‒, e não poucas cumplicidades. Destas, nasceram colectâneas a oito
mãos, sendo mais badalada J. C. Falhou Um
Penalty. O balanço lírico é, hoje, de seis títulos com a minha assinatura,
dois em colaboração e 18 presenças em antologias, também desde 1973, quando
Maria Alberta Meneres me integrou em O
Poeta Faz-se aos Dez Anos, na Assírio & Alvim.
Fraca produção para quatro
décadas. O ritmo criador é, em média, menos de um poema por mês, bem pouco em
nação de poetas derramados. A síntese da primeira década, Para Ortense: Variantes, em 1981, quando iniciava funções de leitor
de Português na Universidade de Budapeste, teve palavras amigas de Luís de
Miranda Rocha no Diário de Lisboa ou
de João Rui de Sousa na Colóquio/Letras;
mas poucos conheceram, e menos entreviram, o que de inquietação psíquico-formal
e novas propostas emergiam, pela singela razão de que nascera um aborto gráfico
e me envergonhei de colocar esse livro no mercado. A plaquete Sobre o Danúbio, em 1985, mereceu de Luiz Fagundes Duarte, no JL – Jornal de Letras,
Artes e Ideias, a seguinte apreciação: «A meu ver, este livro representa
muito do que poderá ser a porta de saída do nosso lirismo português...» E,
se venho construindo, como aí se lia, uma «teoria lírica», certo é que só em
2016, quando reunir 45 anos de poemas, se entenderá um percurso já entretanto
aberto pelo discreto Do Movimento
Operário e Outras Viagens.
Na tarde gélida de 1 de
Novembro de 1981, visitei, no castelo de Buda ‒ com aquela vista fabulosa sobre
o Danúbio, o Parlamento, etc. ‒ , o Museu do Movimento Operário, hoje chamado
Ernst Múzeum, dedicado à arte contemporânea. Subitamente, deparo com uma forja
de ferreiro, igual à dos ruídos em minha casa, que me alimentou, e a lima de
meus tenteios literários não abafava. Nasceu, assim, o poema de uma separação
forçada de pais e filhos em país que se resolvia na emigração, como volta a ser
o caso, hoje, com a diferença de que os novos meios de comunicação facilitam os
contactos. Dedicando o romance à memória da Mãe, que pede o segundo poema ‒
«Minha mãe nunca atrasa o meu futuro. / Repito a escansão deste verso e nado em
luz.» ‒, agradecer a Pai artista num título alusivo é o mínimo que se exige.
Destes movimentos do coração,
onde assomam Filhas e amigos, passamos às viagens na História e na Geografia. O
que em mim faz deflagrar a poesia está em dois versos de “Árvore”, interlocutora
no parque atrás do apartamento de Budapeste, que revisitei, em idas à Hungria e
ao passado. Certa manhã, ao vê-la, nasceu isto: «Todo emudeci ‒ lentamente
franzido na alma / como ribeiro onde caiu a folha suspirada.» Face à referência
imediata, sucede um confronto íntimo, «Um abandono de tudo, como na
felicidade», e nesse transe vão meus passos e ritmos ao longo do Danúbio ou da
Váci utca, à arte do barroco, ao realismo socialista, Europa fora, particularizada
em cidades de passagem ou de demora ‒ entre estas, Château-Thierry, terra de La
Fontaine, mostrou-me, aos 16 anos, em 1972, que a liberdade política e de
pensamento não eram uma fábula…
Após
uma incursão marroquina, sucedem os lugares da portugalidade, cá dentro e
além-mar, do Porto Santo e Pico a Maputo, de Timor ao Brasil. Relevo as feiras
dos Santos e dos Reis, na Torre de Dona Chama natal, «feiras dignas de
Plutarco». Doseada a técnica do encavalgamento com uma estrofação ritmada
aprendida nos latinos e no jazz, e rima vária vigiada, subo, entretanto, aos
conceitos de pátria-berço, pátria-poesia, pugno por uma democracia «recta, cultivada»,
pela greve digna, por uma civilização que se não reduza (como na cidade de São
Paulo) a três milhões de veículos diários parados nos engarrafamentos e
poluindo-nos de barbárie; enfim, defendo uma «funda razão ética» na base da
cultura, convicto de que ninguém se salva sozinho. E se, como digo, «Sempre o
passado pergunta.», as respostas do presente são aleatórias, impreparadas,
dramáticas, mesmo. A atitude nacional revia-se, ainda há pouco, no dístico: «Cá
vamos, pois, seculares, / num descanso como nunca.» Ora, essa negligência só
podia dar mau resultado. Peço, por isso, «Ao mar, ao mar, ser absorto!», porque
devemos inventar-nos, ou naufragamos. A análise política aqui explícita toca o
exaspero com o abandono de Timor-Leste pela ONU, em 1999, e retine o sarcasmo
quando olho ao governo, resumindo a situação neste verso: «A maldade tornou-se
nosso fado.» Se quiserem, leio as quadras iniciais: «A
maldade tomou conta de nós.
/ Prometia baixar impostos; dar/
emprego a milhares; ser correcto;
/ ajudar quem precisa, e avós.
// Um: enganou-nos. Dois: subiu o mar / do desespero, sem sabermos onde / trabalhar. Três:
cresceu tom demagogo.
/ Quatro: não há futuro para netos.»
O
quarto andamento mal se entrevê; mas, após tantas andanças convergindo, enfim,
no díptico Pátria e Amor, torna-se cada vez mais audível uma nota de estoicismo.
Lúcido, este tanto me serve na relação com os outros (venço, por exemplo,
inveja ou ciúme), como quando quero apanhar um autocarro: «Tenho quanto me não
desvia dessa / via doce da alma, conformada / ao hoje, bom ou mau. Não perco
nada, / nem ganho amanhãs por ir depressa.»
Falemos,
agora, do romance, outro regresso a casa, não do Pai, mas da Mãe.
A Casa de Bragança é um título que serve a romance e ensaio.
Bastaria, porém, o grafismo da capa ‒ onde sobressai bela fotografia do
castelo, por Nuno Calvet ‒ para nos situarmos nessa cidade e sua morada primordial, sem, todavia, abandonarmos
algumas propostas de ensaísmo histórico, incluindo a transcrição de documentos
no tombo do Arquivo Nacional. Romance histórico? Sim ‒ mas de alcance
fundamente psicológico no quadro político e social de dois períodos (entre
1344-1464 e 1964-2014) destacados do milénio da família Roĩz ou Rodrigues, seja,
desde 1014. Como conciliar esses lapsos temporais?
A montagem é simples: avós nascidos em 1344
contam a neto quanto viveram até 1398, ano do seu nascimento. Ele acrescenta
episódios até ao momento da escrita, em 1464, celebra Bragança o título de
cidade, dado por D. Afonso V, em Ceuta, a 20 de Fevereiro. No pós-25 de Abril, parte
já impressa desse texto e parte manuscrita são desviadas de certa casa por um
jovem nascido em 1956, que lhes acrescenta 50 anos de vida consciente, entre
1964 e 2014, até à manhã de 20 de Fevereiro, quando reencontra a proprietária
dos fólios medievais …
Diz o narrador actual, no prólogo: «Um longo parágrafo de cinco
séculos vinha até 1964 – tinha eu oito anos, nada sabia de mim −, deslaçando-se
em 20 de Fevereiro de 2014, cujo ponto final nem Deus conhece.» No epílogo,
conta a manhã deste 20 de Fevereiro, por
vir: «Inês acompanha-me à igreja de Santa Maria, ou de Nossa Senhora do
Sardão, onde a cidade começou; melhor, à Domus
Municipalis, onde nós começámos. […] Dona Inês de Castro aguarda, na sombra
matinal do polígono. A seu lado, Clotilde tem na mão esquerda um estojo
azul-escuro.» Junto daqueles monumentos, há dois começos: um, medieval, da
cidade; outro, de uma paixão aos 18, em Junho de 1974. Agora, ex-jornalista de 58 anos, revê-se aos oito, 18 anos e
nos últimos meses, contados na terceira parte. Dentro de instantes, o
leitor vai conhecer, ao mesmo tempo que o narrador-protagonista, Inês e
Clotilde, a história dos seus nascimentos; e percebemos que, intermediando esse
conhecimento, está um original que ocupa as duas partes iniciais, bem como algo
dentro do estojo azul-escuro. Que objecto liga a Inês de Castro de 1353 à
homónima de 2014?
O miolo da história inaugura-se com o casamento
de Pedro e Inês que a tradição diz ter sido na igreja de São Vicente, em cujo
exterior deitando para a Rua Abílio Beça acaba de ser colocado um painel de
azulejos alusivo, inscrevendo quadra castelhana tirada deste romance. A ideia
do então presidente Jorge Nunes nasceu no acto do lançamento da 1.ª edição
deste livro, após considerações minhas sobre a vantagem de Bragança triangular
com Coimbra e Alcobaça um roteiro inesiano. Aos oito anos, o décimo Rodrigues ‒ avô do narrador ‒ assiste à cerimónia, como,
em 1964, aos oito anos, outro Rodrigues assiste à inauguração da estátua de D.
Fernando, segundo duque, à entrada do castelo, enquanto observa menina da mesma
idade, que segura a salva de prata onde se tem a tesoura corta-fitas.
Em casa contígua, também nascida em 1344 ‒
logo, com oito anos ‒, frente à Domus
Municipalis e à branca igreja de Santa Maria, vive Inês, cuja mãe é ama de
um menino aí nado em 1352. É o nosso herói, e revelação para a cidade, que
ignorava tão ilustre filho. Segundo parto de Inês e Pedro, chama-se D. João de
Portugal e Castro, e devera ter sido rei de Portugal. O meio-irmão mais novo,
Mestre de Avis, dizia-se «regente e defensor do reino», antes de ser imposto
por Nuno Álvares Pereira como D. João I; sabem poucos do respeito que este nutria
pelo mais velho D. João de Portugal e Castro, figura romanesca a cuja morte
sucede o nascimento do narrador Afonso Rodrigues…
Vemos, no entretempo, como a família Roĩz
emparelha com os bragançãos e primeiros reis; como um nono avô, poeta,
acompanha D. Dinis no recebimento de Isabel de Aragão; como um derradeiro braganção,
D. Nuno Martins de Chacim ‒ de má índole e fama, sepultado no Mosteiro de
Castro de Avelãs ‒, foi bisavô de Inês de Castro.
Todavia, em primeiro plano, temos a degolação
desta, vida e feitos do filho João, até ao alegado assassínio da suposta mulher
D. Maria Teles, que o torna foragido, com efeitos na sucessão dinástica. Os
seus amigos de infância, avós do narrador ‒ por cuja casa passam D. João I e o
filho ilegítimo D. Afonso (futuro primeiro duque), Nuno Álvares Pereira e
Fernão Lopes ‒, são figuras grandiosas, como será, na revelação da última
página, uma Inês de Castro do nosso tempo, que tudo coordena, à distância.
Na maturidade do narrador quatrocentista,
passeamos pela Europa central com o infante D. Pedro, o das Sete Partidas,
sofremos com o mártir de Fez, D. Fernando, assistimos ao erguer da imponente
torre de menagem brigantina. É este espaço a casa? ou tão-só a Domus
Municipalis, representativa do poder democrático, senão a igreja? ou um
modesto rés-do-chão que as confronta, qual insígnia da linhagem dos Rodrigues?
A leitura é um entrever de sentidos, hipóteses, neblinas. Não há obras impossíveis
de ler, desde que, pacientes, dominemos certos códigos ou nos esforcemos por
abri-los ‒ dentro da liberdade de não as lermos. Não há castelos inexpugnáveis:
um dia, entraremos neles como turistas distraídos. É essa a fortuna dos textos
bem fundados, com a maquinaria oleada, em que só a por vezes custosa conquista
gratifica corajosos, únicos a poderem libar a doce peçonha que é a literatura.
Ana Diogo confessou a Teresa Martins Marques, online: «Devo dizer-lhe que foi um desafio
fascinante pelas vastas e profundas referências históricas que fui tentando
interpretar ou decifrar – e não foi fácil, não, confesso. Mas foi uma
satisfação galopante à medida que avançava nas narrativas, tão magistralmente
enredadas; pasmei perante riqueza lexical e semântica de tal modo opulenta e
desafiante; deliciei-me com o recurso a excertos (penso eu) de Fernão Lopes e
de outros que me recordaram a beleza do Português arcaico; mantive durante
muito tempo a dúvida sobre a real existência de algumas figuras, como a de D.
João de Portugal e Castro. Um aprazível tormento… Em suma, a leitura foi longa
e trabalhosa, sim, mas foi uma labuta deleitosa, um repto constante que me
deixou presa, suspensa e enlevada até ao surpreendente final. Gostei tanto,
tanto, que não tenho palavras para lhe agradecer a sugestão que em boa hora me
fez.»
Deixo excerto da resposta que dei: «A sua apreciação é de
uma leitora-modelo, que qualquer autor gostaria de ter: intui a dificuldade,
mas, vencendo-se a si mesma, conquista, a pouco e pouco, o Evereste de veredas
e sentidos. // O meu conceito de literatura
assenta num trabalho filigranado da linguagem, cujo registo se adequa aos
tempos e personagens, e, nos fios do narrador medieval, é tão irónico e
distanciado como, no narrador de hoje, melancólico e desencantado. // […] Cada personagem é, como o narrador-autor de si mesmo
diz, o tal «castelo de enigmas, […] disposto a ser conquistado». Donde, é um
luxo, ainda que em «aprazível tormento» de generosos leitores, sofrer tão
desejada invasão.»
Este projecto era uma velha dívida que eu tinha
para com a cidade onde, há 40 anos, estreei fato novo de poeta. No cenário de
um locus amœnus assim engrandecido
pela ensaiada arquitectura do verbo e pela investigação histórica, este livro
sonda, em resumo, linhagens que ergueram Portugal; revê o mito de Inês e exalça
um filho a conhecer melhor, na sua fácil entrega ao povo miúdo, a exemplo do
pai, D. Pedro; espelha desencontros no seio da ínclita geração, que deixa
morrer irmão por razões de Estado; mas, acima de tudo, no percurso do
transcritor medieval e de quem, hoje, o revê, importa a demanda de uma
filiação, sem a qual ruiria a casa do coração, única onde a vida se harmoniza.
Obrigado a todos.
Ernesto Rodrigues
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