05 janeiro 2015

MULHERES INSTRUIDAS/ ESCRITORAS, por Hercília Agarez

MULHERES INSTRUIDAS/ ESCRITORAS

( A propósito de A Senhora Rattazzi de Camilo Castelo Branco)

“Guarda-te de homem que não fala, de mulher que faz versos e de cão que não ladra”.

    Em Carta de Guia de Casados, da autoria de D. Francisco Manuel de Melo, obra importante para o conhecimento da história social do nosso século XVII, deparamos com o conceito do escritor sobre a educação das mulheres e sobre o papel que lhe deve incumbir na sociedade. Resume-se este ao serviço doméstico como dona de casa, esposa e mãe: “Criou-as Deos fracas, sejam fracas; oxalá façam o que são obrigadas, não lhes quero pedir mais que a sua obrigação”.
    No que à sua educação diz respeito, tudo se resume à absoluta concordância do autor com a expressão popular “ Deus nos livre de mula que faz him e de mulher que sabe latim” que concretiza com o seguinte episódio: “ Confessava-se uma mulher honrada a um frade velho e rabugento; e como começasse a dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor: - ‘Sabeis Latim? ‘ Disse-lhe: - ‘Padre, criei-me em mosteiro’. Tornou-lhe a perguntar: - ‘Que estado tendes? ‘ Respondeu-lhe: -‘Casada’. A que tornou: - ‘Donde está vosso marido? ‘ – ‘Na Índia, meu padre’ (disse ela). Então com agudeza repetiu o velho: - ‘Tende mão, filha: sabeis latim, criastes-vos em mosteiro, tendes marido na Índia? Ora ide-vos embora, e vinde cá outro dia, que vos é força que tragais muito que dizer, e eu hoje estou com muita pressa”.
    Organizado em cartas como a obra anterior, surge, no século XVIII, época da vigência do Iluminismo, o livro do árcade Luís António Verney intitulado Verdadeiro Método de Estudar, considerado por António Sérgio “ a maior obra de pensamento que se escreveu em português”. Abrange ele matérias como a Linguística, a Oratória, a Poesia, a Filosofia, a Estilística e a Pedagogia. Com ele pretende Verney criticar a orientação escolástica dos estudos e orientá-los no sentido da utilidade que poderiam assumir, tanto no que dizia respeito à República como à Igreja.
    Na décima sexta carta, dedicada à educação das mulheres, defende-a convictamente, na certeza de que estas “discorrem tão bem como os homens”. Além disso, sendo elas as primeiras educadoras dos seus filhos, é de toda a conveniência que saibam o que dizem. Também como esposas a instrução lhes é útil, como explicita na seguinte passagem: “ Persuado-me que a maior parte dos homens casados que não fazem gosto de conversar com suas mulheres, e vão a outras partes procurar divertimentos pouco inocentes, é porque as acham tolas no trato; e é este o motivo que aumenta aquele desgosto que naturalmente se acha no contínuo trato de marido com mulher. Certo é que uma mulher de juízo exercitado saberá adoçar o ânimo agreste de um marido áspero e ignorante, ou saberá entreter melhor a disposição de ânimo de um marido erudito, do que outra que não tem estas qualidades”.
    Se, anteriormente ao século XX, a mulher instruída era vista como invasora de território reservado ao homem, o caso agravava-se quando ousava com ele competir no manejo da pena. A tal se atreveu, no século XVIII, a Marquesa de Alorna, considerada a Madame de Staël portuguesa e que nos legou as suas Obras Poéticas, em seis volumes, onde deixa transparecer características estéticas de uma sensibilidade romântica. Alexandre Herculano haverá de lhe ficar reconhecido pelo magistério que exerceu no seu famoso salão e cujo principal discípulo foi o poeta pré-romântico Filinto Elísio.
    Não fossem as circunstâncias conhecidas da vida de Ana Plácido, companheira de vida e de infortúnios de Camilo Castelo Branco, teria ela provavelmente ocupado um lugar de destaque nas letras oitocentistas. Colaboradora de jornais e revistas, cultivou a poesia e foi autora de dois romances, sendo o mais conhecido Luz Coada por Ferros que, como o título indicia, foi escrito nos dias que passou encarcerada com o escritor na Cadeia da Relação do Porto. Esta sua actividade literária terá sido estimulada pelo próprio novelista e tê-la-á feito abortar a falta de disponibilidade mental causada por múltiplos desgostos.
    Terá sido esta mulher, por razões sentimentais, uma excepção ao modo como o homem de Ceide encarava as mulheres escritoras. A ilustrá-lo, apoiemo-nos na polémica pessoal que o envolveu com uma princesa francesa, descendente dos Bonapartes pelo lado materno, mulher de complexa, aventurosa e faustosa existência, com um “currículo” donde sobressai o facto de ter sido amante de Victor Hugo. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura e visitou vários países, entre os quais Portugal, onde fez “estragos” e gerou controvérsias. Aqui pretendeu impor-se como escritora, cultivando amizades nos meios sociais, políticos e artísticos, tendo sido famosas as recepções em que tudo fazia para insinuar-se e ganhar notoriedade a qualquer preço.
    Não terá conseguido os seus intentos. Despeitada, publicou o livro Portugal à vol d’oiseau, resultante das duas viagens que fez ao nosso país em 1876 e 1879, traduzido em 1881 com o título Portugal de relance. Nele faz a autora considerações críticas que atingem vários alvos: o clero (para ela representado pela figura do Padre Amaro de Eça), a história de Portugal, a política e seus destacados membros, o jornalismo, a vida íntima dos portugueses, a aristocracia, o sector hoteleiro (refere que os hotéis de Lisboa têm ratos e percevejos), a literatura em que são zurzidos, entre outros, Herculano, Castilho, Bulhão Pato, Júlio Dinis, Mendes Leal e…obviamente, Camilo.
    Quem conhece o carácter quezilento e irascível do escritor, a sua tendência a entrar, por tudo e por nada, numa boa polémica, compreenderá que lhe seria impossível não sair a terreno para defender a sua dama, neste caso a sua obra, encabeçando a legião dos esperados contestatários. Assim, publica em 1880 o folheto A Senhora Rattazzi em cujo preâmbulo, a reboque de D. Francisco Manuel de Melo (“ Mulheres doutoras, autoras e compositoras dava-as o diabo”) exprime a sua opinião sobre as mulheres escritoras. Estaria a pensar em Les Femmes Savantes de Molière?
   
    Mulher escritora, por via de regra pouco exceptuada, é um homem por dentro. O coração, que lhe devia ser urna de suavíssimas lágrimas, faz-se-lhe botija de tinta; e as doces penas da alma metalizam-se-lhe aguçadas em penas de aço. O fuso de Lucrécia e da rainha Berta desfez-se em canetas. Em vez de tecerem o seu bragal, urdem intrigas.
    […] Não há feminilidades que se respeitem desde que a mulher se masculiniza, e, como escritora virago, salta as fronteiras do decoro, sofraldando as espumas das rendas até à altura da liga azul-ferrete.
[…] Eu, criado no velho noticiário, tendo de anunciar o produto duma dama dado à luz, antes quisera, em vez dum livro bom, anunciar um menino robusto. Acho muito mais simpática a feminilidade de mães pálidas, com olheiras, emaciadas, que aconchegam dos seios exuberantes a criancinha rosada, recém-nascida. Não me comove nem alvoroça o espectáculo de uma autora que se remira e envaidece na brochura que deu à luz, obra entre cinco e sete tostões – 740 réis com estampilha. Por isso, antes quero noticiar um menino robusto que um oitavo compacto.

    No corpus do texto polémico, Camilo regista e contesta as várias barbaridades contidas numa publicação cujo título sugere a superficialidade das abordagens feitas. A terminá-lo, regista:

            Vence-me o tédio; mas não me punge o remorso de ter lido 415 páginas. Tenho, porém vergonha de que um ou outro português, desnacionalizado por despeitos pessoais e políticos, se compraza de ver os seus conterrâneos enxovalhados pela srª Rattazzi, cuja maledicência é notoriamente europeia. O seu renome de estilista desbragada sem cerimónia ganhou-o em Itália e Paris a ponto de lhe imputarem as brochuras crapulosas do infame bandido Vésinier, um corcunda petroleiro que espingardearam em 71.
    Que escreve a princesa escritora sobre Castelo Branco? Pouco mais do que isto:

Todos os romances do solitário de S. Miguel de Ceide contêm infalivelmente um tipo de brasileiro, uma rapariga que se recolhe a um convento, um fidalgo de província e um romântico apaixonado e transparente. É invariável como a chuva e o bom tempo. De forma que o primeiro romance que se lê do Sr. Branco parece muito interessante, o segundo acorda reminiscências, e o terceiro adivinha-se; o quarto sabe-se de cor, volta-se a página sabendo-se o que vai passar-se. É uma galeria de personagens que raramente se renova, como a dos museus de figuras de seda.

    Esta opinião remete para a de Miguel Torga:

     Este Camilo, com o devido respeito, lembra-me sempre uma romaria…
 Muita gente, muito vinho, música, a procissão com o Brasileiro que paga tudo à vara do pálio, a missa, o sermão, a menina que comunga, o homem da vermelhinha, o jantar na Residência, e o arraial à noite, com foguetes de lágrimas, onde se acaba tudo aos tiros e às facadas.

                                                                                                                                 Diário I

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