OS FILHOS DO (IN)FORTÚNIO

Miguel Torga, Diário X
A vida na cidade nunca fora apenas uma opção.
Fora a opção. A única realidade que haviam conhecido até então desde os tempos
das diabruras mais feias na casa de uma tia tão tia cujo nome já se tinha
perdido no tempo. Por essa altura, o mês de agosto, e só esse, era passado
algures num parque remoto do país que nem parecia o seu. Chamavam-lhe
Montesinho e ficava a dias de viagem de Lisboa. Pelo menos para os mais jovens
da família, a viagem, no início dos anos 80, parecia ter a duração de uma
eternidade.
Aquela viagem tinha sabor a aventura. Chica e
o irmão Rodrigo preparavam-se durante semanas para receberem o cheiro a verde e
a silêncio que o campo exalava.
Aos quinze anos, e já no final daquela década,
a padecer das primeiras borbulhas, Chica passara a Francisca e recusara-se a
deixar o ar cada vez mais putrefacto da cidade durante o verão por não
acontecer, segundo ela, nada de moderno na montanha. Lá não havia as festas da
moda, as pessoas exuberantes, os lugares requintados. O irmão seguira-lhe o
raciocínio, a vontade e o exemplo. Afinal, ela era a mais velha e tinha sempre
todas as respostas. Instalar-se-ia uma luta entre eles, os pais e a tia
Montesinho, como era conhecida na família. Vencê-la-iam os dois petizes depois
de algum tempo, de resto.
Um dia, porém, a opção seria definitivamente
outra e ver-se-iam obrigados a regressar munidos de armas e bagagem. Sobretudo
bagagem. A montanha contemplá-los-ia do alto da sua imensa pacatez e sabedoria
e ensiná-los-ia a viver de novo na simplicidade de quem tudo tem e nada anseia.
A reviravolta seria total. Sem os pais e a
maior parte da família para os apoiar, ou até mesmo a tia enrugada dos prados
longínquos a quem recorrer, sem os amigos íntimos, chegados, os que estavam lá
em casa com convite e sem ele, sem os empregos e empregados, as lojas e os
restaurantes de luxo, Rodrigo voltaria a sentir o cheiro dos prados nas suas
narinas. E talvez Francisca se resignasse.
A hora havia chegado. Teriam de mudar todos os
caminhos. As suas vidas teriam de ser reformuladas. Até a Delta Q imaculada,
imponentemente
implantada em lugar de destaque na cozinha
chique a valer e sem cujo café se haviam recusado sair de casa centenas manhãs
antes, deixaria de fazer sentido e seria barbaramente substituída pela velha
cafeteira sem asa da tia Montesinho, a mesma que tinham deixado para trás
trinta anos antes, algures num lugar ermo do concelho de Vinhais.
E Francisca? A mana negar-se-ia com toda a
garra, gritos e punhados de cabelo a aceitar a mudança, inevitável, que, de
mansinho, se ia instalando nas suas vidas. Resistiria até a última gota do
perfume mais caro se enxugar no fundo do frasco.
Até quando conseguiriam ter motorista e pagar
a exorbitância do condomínio do quinto andar das Amoreiras para morarem num
luxo que já sabia a catástrofe financeira? Até quando conseguiriam passear
calmamente na avenida da Liberdade e ignorar aqueles que lhes estendiam a mão?
Enfim, talvez fosse tudo uma questão de
opções, gavetas, pó, cheiros e caminhos.
Agora, o campo, o isolamento, a aridez e o
ermo, ofereciam-se-lhes como a única saída viável, embora dificílima. Para
Francisca seria quase como regredir em termos civilizacionais. Não conseguia
entender por completo como é que aquelas pessoas eram capazes de viver um
quotidiano de pedra, madeira, terra e trabalho braçal. Como é que conseguiam
encontrar algum conforto num sítio onde tudo tinha de ser produzido e não
simplesmente adquirido? Como se sentiam os aldeãos realizados e satisfeitos
vivendo numa povoação com uma rua e quatro ruelas, duas delas conducentes a
estábulos? Sem lojas, cafés ou hipermercados? Sem um cinema, um quiosque ou
simplesmente rede de telemóvel?
Os (des)encantos de Montouto instalar-se-iam
gradualmente no seu coração. Devagar, mas firmemente, como a flor do
castanheiro, na primavera, se instala vagarosamente nos ramos ainda queimados
pela geada de março…
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