19 junho 2014

Alfândega da Fé - Convite

Apresentação da obra Percursos do poeta Francisco José Lopes
Por Norberto Francisco Machado da Veiga

I – Breve resenha biobibliográfica do autor

Francisco José Lopes nasceu em 1955, em Alfândega da Fé, onde reside. Licenciou-se em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e é professor do quadro no Agrupamento de Escolas de Alfândega da Fé, onde desempenha, atualmente, as funções de Diretor. A sua atividade profissional tem-se desenvolvido essencialmente no campo da educação, do ensino, da cultura e da comunicação autárquica.
Tem vários textos publicados na imprensa regional (Quanza-Sul, Angola, O Elvense, de Elvas, Maré Viva, de Espinho, Fonte Nova, de Portalegre, Terra Quente, de Mirandela e A Voz do Nordeste, de Bragança). Foi, também, coordenador do Boletim Municipal da Câmara Municipal de Alfândega da Fé desde o seu primeiro número, saído em 1990, até praticamente à sua extinção.
 Prefaciou várias obras de diversos autores, dos quais menciono: Fernando Pereira, Modesto Navarro, Virgílio Tavares, Regina Gouveia, Hélder Rodrigues e Aida Borges e apresentou, igualmente, muitos desses trabalhos. Além disso, é o autor do texto «Alfândega da Fé», inserido no Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses. O autor está representado em Entre o Sono e o Sonho, Antologia da Poesia Contemporânea, Vol. V, publicada pela Chiado Editora, em março de 2014.
            Da sua publicação literária saliento: "O Arquivo Histórico Municipal de Alfândega da Fé", edição da CMAF, em 1994; No tempo das musas, poesia, edição de autor, em 1999 (2.ª edição, da CMAF, 2001); Memórias do tempo, poesia, edição de autor, em 2001; No tempo das palavras, poesia, edição da CMAF, em 2003, e Alfândega da Fé – Registos de um Percurso Histórico, vol. I, edição da CMAF, em 2006.
Termino este sucinto percurso de vida com uma afirmação suscetível de causar alguma celeuma, mas aceite pela maioria dos Alfandeguenses, Francisco José Lopes foi e continua a ser o principal dinamizador cultural de Alfândega da Fé, desde a década de oitenta do século passado até ao presente.
II – Uma possível porta de entrada para o “lago escuro” da obra Percursos do poeta Francisco José Lopes. 
 “Quantos ledores, tantas as sentenças” Sá de Miranda


Escreveu Alexandre O´Neill: “A poesia é a vida? Pois claro! / (…) Embora custe caro, muito caro, / e a morte se meta de permeio.”

Camões na última estância da décima Canção, mais conhecida pelo incipit “Vinde cá, meu tão certo secretário” escreve: “Nem eu delicadezas vou cantando / co gosto do louvor, mas explicando / puras verdades já por mim passadas. / Oxalá foram fábulas sonhadas!”


A poética de Francisco Lopes, já nas três obras publicadas entre 1999 e 2003, mas sobretudo na última, que agora apresentamos, pode sintetizar-se nestas duas epígrafes, uma vez que a sua poesia é enformada pela dureza da vida e, por isso, ao poeta não resta outra alternativa a não ser explicar puras verdades que o leitor, seguramente, reconhecerá nos poemas de Percursos.
Henri Morier, no Dicionário de Poética e de Retórica, elenca diversos tipos de poesia: poesia abstrata, poesia pura, poesia pura comunicável e, por fim, poesia pura que procede da alma.
Detenho-me nos dois últimos.
A poesia pura é comunicável. Estranharão, porventura, a minha ousadia em qualificar os poemas de Percursos como poesia pura, mas estranhem, seu truísmos e ambages, porque depois de estranhar entranhar-se-ão, por certo, uma vez que dificilmente ficarão indiferentes a alguns poemas de Percursos. Leio, a título de exemplo, o poema “Quando a morte nos une”, que concentra a mensagem poética, apenas, numa sextilha, presente na página 52.

Quando a morte nos une
é porque a vida vale a pena.
A quem parte
cumpre deixar a vida
a quem fica
cumpre honrar a morte.

Seguindo na esteira do crítico helvético, quero contextualizar a sua afirmação “a poesia pura procede da alma”. Quem lê os poemas de Percursos não identifica neles uma poesia da alma. Reconhece, sim, uma poesia da “Vontade”, no sentido saramaguiano do termo, porque o poeta, à semelhança da personagem mítica e simbólica, Blimunda, que o nobel português imortalizou, é o ser que consegue ver para além dos limites do racional. Por essa circunstância, apresenta-nos uma realidade incoerente e absurda, num primeiro momento, com o singular objetivo de nos pôr a cogitar, como asseguro no prefácio da obra, e de nos convocar à liça e à práxis para que, em conjunto, lutemos por um mundo mais justo e consentâneo com a condição e a dignidade humanas. O poema “Apenas eu”, da página 26, corrobora esta temática.

Hoje sou apenas eu
e a minha dúvida
contra o mundo todo
que não percebo.
Hoje sou apenas a mágoa
que me consome
num grito sem eco nem espaço
sou apenas a desilusão
do pensamento
a tentar perceber finalmente
se vale a pena
aquilo que faço
se tudo isto não é uma ilusão
de ótica ou do real
e cada passo uma aproximação
de outro abismo afinal!

Outro motivo de interesse da poesia de Francisco Lopes, que, em meu juízo, valoriza e engrandece os textos de Percursos é a noção de contaminatio, como é apresentada por Séneca, na octogésima quarta carta a Lucílio. O filósofo recorre à metáfora da abelha, que para fazer o mel tem de retirar o pólen de várias plantas. Do mesmo modo, o poeta deve beber e imitar os outros escritores. Assim, procede Francisco Lopes que lê e apreende os textos dos outros poetas para reescrever e reatualizar as suas mensagens, que continuam atuais. Assim sendo, o vate cumpre a faceta prometaica da poesia, como também sublinho na introdução da obra, com o propósito de transformar o mundo. Neste sentido, não é de estranhar o diálogo incessante da poesia de Francisco Lopes com os poetas que o precederam. Nomeio a título de exemplo: Cesário Verde presente nos últimos poemas da segunda parte: “Ao entardecer” (P. 79), “Anda alguém na minha rua” (P. 80) e “Deambulando nos cubos de granito” (P. 81); António Nobre, no longo poema narrativo que abre a terceira parte, intitulado “Portugal a preto e branco” (P. 89), onde são por demais evidentes as ressonâncias dos poemas: “Carta a Manuel” e “Lusitânia no Bairro Latino”, do autor de Só; José Régio, na composição onde a intertextualidade aparece, de forma denotativa, no próprio título do poema “Não, não vou por aí” (P. 97); A voz torguiana, também, retumba em Percursos, em especial na faceta inconformada que Francisco Lopes partilha com o autor de “Orfeu Rebelde”, presente no poema “Grito de alerta” (P. 71). Termino, não querendo ser exaustivo, com a leitura do poema “Sentir o fim”, presente na página 39, onde são detetáveis reminiscências de Eugénio de Andrade, Carlos de Oliveira e Manuel Alegre, pois todos eles problematizam sobre a própria matéria da poesia, ou seja, as palavras.
As palavras
tomaram de assalto o pensamento,
queimaram as trancas da solidão
e lançaram o sonho ao firmamento.
As palavras
são assim, exigentes,
reconstroem a vida em pedaços
mas não sabem o que é sentir o fim.

Na carta centésima oitava, Sénica, recordando o mestre Átalo, relembra os seus ensinamentos: “O docente e o discente devem-se unir num propósito comum: o primeiro ser útil ao discípulo, o segundo, tirar benefício do convívio com o mestre. De facto, quem convive diariamente com um filósofo ou um poeta obtém sempre algum benefício”.
Que mais-valia é esta?
Que pode acrescentar a leitura da poesia nos dias que correm?
Deixo-vos com estas interpelações, na expectativa de que possais encontrar nos poemas de Percursos, não uma resposta, mas, antes pelo contrário, mais dúvidas. Porque, como é do senso comum, só conhecendo as nossas limitações é que poderemos ajudar a transformar o mundo. O mesmo defendia Sócrates no seu aforismo “Gnoti seauton / Conhece-te a ti mesmo” que se encontrava gravado no pórtico do templo de Apolo, em Delfos, para que pudesse ser contemplado e praticado por todo o ser humano.
Nem outra incumbência, na minha ótica, pode ser cometida ao poeta e, por extensão metafórica, à poesia, a não ser provocar a reflexão do homem e levá-lo à autognose, de que falava Sócrates. Assim, conhecedor dos seus limites, e, sobretudo, das suas potencialidades, o ser humano pode aspirar a transformar o mundo. Ora, se a poesia de Francisco Lopes, outro préstimo não tivesse, este seria, por si só, mais do que suficiente para despertar o nosso interesse pela sua leitura.
Deste modo, nas páginas de Percursos, o leitor descobrirá, sem dúvida, motivo de reflexão sobre várias temáticas, que se encontram escalpelizadas na introdução da obra. Encontrará, também, revolta, angústia, solidão e sofrimento. Todavia, o ledor deve ser persistente e continuar a leitura e surpreendentemente deparar-se-á com a alegria, a camaradagem, a solidariedade e a identificação, na senda de Cesário Verde, com os humildes deste mundo. Sintetizando, em Percursos, o lente encontrará apenas e só, a poesia da Vida, ou, dito de outro modo, a vida transmutada em poesia.
Isto só é possível porque Francisco Lopes consegue, nesta obra, através do distanciamento do sentimento e da personalidade, escapar ao esmagamento da identidade, que se iniciou com o romantismo. Deste modo, os poemas de Francisco Lopes ao serem sobre si, leia-se o autor, são-no, também, de forma inequívoca, sobre o outro, ou seja, o homem hodierno, onde o leitor se revê. Esta poesia que dá atenção à realidade, questionado permanentemente o leitor, contribui, de forma inequívoca, para a idealidade do mundo pessoal do leitor. Pois, como diz Marguerite Yourcenar, na obra “Memórias de Adriano”: “Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano.” Vejamos o que o poeta nos diz no texto “É urgente sermos nós”. (P. 105)



É urgente dizer a verdade
chamar o nome às coisas
pelo nome que as coisas têm
voltar de novo à palavra
construir muros de realidade
contra medos e silêncios.
É urgente ser veloz
nos caminhos por percorrer
erguer o hino e a bandeira
o pau ou o estadulho
o sombreiro e o cajado
o grito e a moleta.
É urgente sermos nós.

         Sobre este assunto, Eduardo Lourenço, no livro Poesia e Metafísica, diz-nos que: “Os Lusíadas não nos remetem senão para o seu autor”. Da mesma forma, os poemas de Francisco Lopes exigem, para uma cabal descodificação, o conhecimento do percurso de vida do autor que os assina. Resumindo, o que o crítico quis sublinhar é que, em termos poéticos, se torna impossível dissociar a Vida da Escrita. Em síntese, a poesia não é mais do que o produto final da transformação alquímica das sensações, emoções e vivências do poeta em palavras. 
Termino com a expectativa de que este meu texto, sobre os poemas de Percursos, não falhe o seu objetivo, que é, segundo Gastão Cruz: “o de entrar no «lago escuro», não para o iluminar, mas para lhe conhecer a escuridão”.


Bragança, Centro Cultural Municipal Adriano Moreira, 11 de junho de 2014

Academia de Letras de Trás-os-Montes

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